Como de costume, gosto de fazer
alguns comentários por ocasião do lançamento do Anuário Nacional de Segurança
Pública, matizando a cobertura da imprensa sobre os dados e procurando tirar
algumas lições.
Antes de tudo, gostaria parabenizar
o FBSP e equipe pela nova edição do Anuário. O Ministério da Justiça divulga em
sua página dados criminais limitados, e de 2014. Por incrível que pareça para
um país com 61 mil homicídios, para ter informações mais detalhadas e recentes
sobre os números do crime, só consultando o anuário de uma ONG, que se utiliza
da LAI para coletar os dados junto aos órgãos públicos, que deveriam ser
transparentes com relação aos dados. E para dados de 2017, só através desta ING
(indivíduo não governamental, como
definiu alguém jocosamente este trabalho), que coleta mensalmente os dados
junto aos sites de algumas Secretarias de Segurança. Difícil fazer e avaliar
política pública assim.
Os dados do anuário são anuais e
relativos a 2016. Assim, não conseguem sempre captar as tendências mais
recentes, que começam a mudar a partir do segundo semestre de 2016. O resultado
é que quando o anuário é divulgado no final do ano, estamos olhando a situação pelo
retrovisor. O anuário mostra os roubos subindo em 2016 com relação a 2015. Se
olharmos para os dados mais atuais, que já refletem em parte a mudança no
contexto econômico, a análise muda parcialmente: roubos caem -9,7% em agosto em
São Paulo com relação ao mesmo período do ano anterior, desaceleram fortemente
no Rio de Janeiro, caem -12,8% em Minas, caem -3,6% no Rio Grande do Sul, diminuem -12,2% no Mato Grosso do Sul e -38,2%
no Mato Grosso. Diminuem -26,5% em Goiás
e -19% no Paraná. Roubo de veículos caem -21% no DF e -22% na Bahia (dados da
Capital). Em Rondônia, a queda é -10% com relação a setembro de 2017. A
tendência de queda nos roubos prevaleceu durante quase todo ano de 2017 no
Ceará, apesar do aumento de 8% em setembro. Em geral, como previsto pela
relação entre ciclos econômicos e crimes patrimoniais, boa parte dos Estados
mostra queda nos roubos e roubos de veículos com relação ao ano anterior.
Feitas estas observações, vemos
no anuário que as mortes violentas intencionais cresceram 3,8% no país. Mas não
foi generalizado: tivemos queda em 10 Estados. Quem puxa a alta são RJ, PE, PA,
RS, BA e RN. Rio de Janeiro puxa os números para cima não só nas mortes, mas
também nos outros indicadores criminais. De modo geral, a crise econômica
iniciada em 2014 e a crise fiscal e moral carioca explicam boa parte dos aumentos
observados nos dados de 2016. O impacto carioca nas tendências nacionais pode
ser notado em diversos crimes: furto e roubo de veículos crescem 7,3% em 2016,
puxados por uma alta de 21,8% no Rio (Em SP, houve queda de 0,2%). O Roubo de
carga é altamente concentrado no Rio e São Paulo e dos 4239 casos a mais em
2016, 2645 devem-se ao Rio. No roubo em geral observou-se um aumento nacional
de 13,9%, inflacionado novamente pelo caso carioca, onde o crescimento foi de
40% (em SP, aumento de 3,1%). Em resumo, 11 trimestres consecutivos de queda do
PIB, cortes nos orçamentos de segurança e a piora no desempenho do RJ explicam
em boa parte as tendências de 2016.
Os casos do aumento das mortes no
RJ e em PE chamam a atenção, pois vinham ambos de uma tendência de queda
consistente nos anos anteriores. Homicídios no Rio caíram durante quase uma
década, a partir de 2005. São bons exemplos de como a gestão pode influenciar
as taxas de criminalidade para cima ou para baixo, quando políticas de segurança
são adotadas e depois abandonadas. Desagregando os dados, vemos que as mortes
em confronto com a polícia são responsáveis por boa parte do crescimento das
mortes violentas no RJ. As mortes em confronto estavam estabilizadas na casa
dos 2 mil casos nos anos anteriores mas disparam depois da crise de 2014. Em
resumo, a crise aumentou a quantidade de roubos, que impactou nos confrontos
com a polícia, que por sua vez impactou nas estatísticas gerais de mortes
violentas. É importante detalhar o contexto das mortes, pois o tratamento do
problema das mortes em decorrência da atividade policial é diferente do
tratamento do problema dos homicídios em geral. São Paulo reduziu drasticamente
estas últimas e como consequência, parcela expressiva das mortes no Estado
ocorre hoje no contexto dos confrontos com a polícia.
Como também previsto pela teoria,
que sugere uma relação inversa entre estatísticas de tráfico e de roubo de
veículos, o anuário mostra uma queda nas estatísticas de tráfico de drogas de
-7,2% em 2016, enquanto os roubos de veículos cresceram 7,3%. Dos 25 Estados
analisados, encontramos tendências inversas entre tráfico e roubo de veículos
em 18. Parecem corroborar espacialmente o que vimos ocorrer temporalmente
quando tomamos os dados de Rio e São Paulo: quando roubo de veículo cresce as
estatísticas de tráfico caem e vice-versa. A diminuição de renda observada nas
crises, aparentemente, reduz o consumo de drogas como o de qualquer mercadoria.
Com menos consumo, caem as apreensões e ocorrências de tráfico. E aumenta de
demanda por peças de reposição de veículos no mercado paralelo, impactando no
roubo de veículos.
O anuário mostra uma redução
geral no orçamento destinado a segurança pública da ordem de -2,6%, esperado
num contexto de diminuição da arrecadação. Em São Paulo, a queda foi de -10,2%.
Apesar disso, o desempenho médio de São Paulo foi superior à maioria dos
Estados. Em longo prazo os cortes nos orçamentos implicam em diminuição do
desempenho, mas a relação entre ambos não é tão direta. São Paulo gasta 5,7% do
orçamento com segurança enquanto o Rio gasta 16%. O gasto per capita é de 245 reais
em São Paulo e de 550 no Rio. A análise não é tão simples, claro. Mas sugere
que gestão é elemento importante e que precisamos aprofundar os estudos da
relação entre gastos com segurança e tendências criminais. Como se gasta talvez
seja uma variável mais relevante do que quanto.
E por falar em qualidade dos
gastos, o anuário mostra que o custo médio anual das operações de Garantia da
Lei e da Ordem (GLO) executadas pelas Forças Armadas é de 255 milhões de reais.
O custo da Força Nacional de Segurança Pública está em torno de 212 milhões, de
modo que, somadas, gasta-se anualmente 467 milhões com estas operações. É muito
dinheiro invertido em políticas pouco avaliadas com relação ao custo-benefício.
Para efeitos de comparação, o Fundo Penitenciário Nacional gasta em média 428
milhões e o Fundo Nacional de Segurança Pública 513 milhões. Talvez fosse preferível
transferir recursos das operações GLO e da Força Nacional para os fundos
nacionais. O fato é que ninguém avalia estes gastos, que são insuficientes de
modo geral (o orçamento anual de SP equivale a cerca de 10 bi) e eventualmente,
mal alocados.
Em resumo, não temos informações
suficientemente amplas e atualizadas para propor e avaliar políticas de
segurança no Brasil. Quando existem, as avaliações não são feitas, por deficiências
de capacidade institucional do governo federal. Algo semelhante ocorre nos
Estados e não apenas na esfera da segurança. Isto quando vemos, através dos
dados do anuário, que gestão é um elemento crucial para obtenção de bons
resultados. Para que tenhamos boas novas nas edições futuras, algo urgente
precisa ser feito para sanar estas deficiências. A agenda de reformas é grande em
algum momento teremos que lidar com a espinhosa questão da reforma das polícias.
Mas aumentar o orçamento da segurança em nível federal, melhorar as bases de
informações criminais e recuperar a capacidade institucional do governo
nacional nesta área não é tão complicado assim. Falta disposição para desarmar esta bomba atômica.
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