quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Meu depoimento sobre as armas de fogo


Passei a prestar atenção na questão das armas de fogo quando trabalhava no Ilanud no final dos anos 90 e a ONU publicara um estudo internacional sugerindo que o Brasil era o pais onde proporcionalmente mais se usava armas de fogo para cometer homicídios. Havia uma percepção difusa de que as armas estavam de algum modo ligadas ao nosso crescente número de assassinatos – tanto que em 1997 o porte ilegal passa de contravenção a crime e é criado o SINARM – mas pouquíssimos estudos empíricos sobre o tema.

Como sempre, sofríamos do crónico problema da falta de dados e de pesquisas para embasar políticas públicas. A Lei 4937 de 1997 produziu um forte impacto na venda de armas no país e para reclamar da queda de 40% no faturamento, a indústria começou a divulgar seus dados. Na literatura internacional aventava-se a hipótese de que a taxa de suicídios local tinha forte relação com a disponibilidade de armas e agora dispúnhamos de dados para testar esta correlação no Brasil.

Este foi meu primeiro levantamento sobre o tema em 1999: tomamos as vendas anuais de armas da Taurus em 1997 e 1998, por Estado, calculamos a taxa de armas por habitante e comparamos com a taxa de suicídios disponibilizada pelo Datasus. E ali estava: confirmando um levantamento internacional que Martin Killias fizera anos antes com 18 países, encontramos uma forte correlação (r=.58) entre a quantidade de armas vendidas nos estados pela Taurus e suas respectivas taxas de suicídio. Não havia o tal “efeito displacement” (que afirmava que “quem quer se matar se mata de qualquer jeito”). Nos Estados com menos armas, menos gente se matava.

Hoje já está estabelecido que a relação entre suicídios e disponibilidade de amas é tão grande que se você não sabe ao certo quantas armas existem em circulação num lugar, pode-se tomar a taxa de suicídio como uma medida substituta. Esta foi a estratégia seguida por Daniel Cerqueira do IPEA, aliás, para corroborar os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre a queda dos homicídios em São Paulo, em sua tese de doutoramento.

O principal motivo para se portar arma, segundo as sondagens de opinião, é a proteção contra crimes. A segunda razão é “se sentir forte” e a terceira “fazer boa impressão com os colegas”, como revelou a pesquisa de Nanci Cardia do NEV em 1999. Mas será que a arma de fogo realmente protege quem a usa ou aumenta o seu risco? Esta foi a segunda oportunidade que tive de estudar o tema, como colaborador em 2000 de uma pesquisa conduzida por Jaqueline Signoreto e Renato Lima para a Secretaria de Segurança de São Paulo. Em 1999, Ignacio Cano do Iser já estudara milhares de roubos no Rio de Janeiro e concluíra que o risco de levar a pior durante um assalto – ser ferido ou morto – era maior para quem tinha arma de fogo e reagira. Os dados de São Paulo iam na mesma direção: segundo o DataFolha cerca de 18% dos paulistas andavam armados. Entre as vítimas de latrocínio, 28% estavam armadas, sugerindo, portanto, que o uso da arma aumenta o riso de ser morto num assalto. O sociólogo Claudio Beato acaba de divulgar neste mês um estudo feito com 78 mil vítimas corroborando as conclusões destes levantamentos anteriores, usando dados da pesquisa nacional de vitimização.

A mídia dava muita atenção na época ao armamento pesado em mãos dos traficantes e os defensores das armas argumentavam que o grande problema da violência era causado por estas armas importadas, de grosso calibre, nas mãos dos criminosos. Esta discussão acabou pautando uma série de pesquisas sobre o tipo de armas envolvidos nos crimes. Para a surpresa geral, os grandes vilões não eram os fuzis AR-15 mas os bons e velhos revolveres Taurus e Rossi, calibres .32 ou .38. Os bandidos valorizavam a indústria nacional! Foi o que detectou nova pesquisa do Iser de 2000 analisando 590 armas apreendidas no Rio em razão de crimes: 57% Taurus e 31% Rossi. Em 2004 me encontrava na Secretaria de Segurança de São Paulo e pesquisando 15 mil armas apreendidas pela polícia encontrei números bastante parecidos: 56% Taurus e 14% Rossi. Lavantamentos do Sou da Paz trazem os mesmos padrões. Caia por terra assim o argumento de que o perigo vinha de fora...

Estes e outros estudos foram subsidiando o debate sobre a questão das armas de fogo e seu envolvimento com os níveis intoleráveis de homicídios no Brasil, e que ajudaram a criar um cenário favorável para a aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003. Não se trata, como alguns afirmam, de medida Petista para preparar a revolução bolivariana no Brasil. A discussão começou bem antes e quase todo o projeto foi elaborado durante o período FHC, sendo apenas fruto da dinâmica congressual o fato de ter sido aprovado no primeiro ano da gestão Lula. A medida já constava do Plano Nacional de Segurança Pública de 2000, do qual tive oportunidade de participar. Acompanhei de perto este processo, tanto como conselheiro do Instituto Sou da Paz quanto como diretor da Senasp no último ano do governo FHC e de fato o controle de armas era uma questão consensual na comunidade acadêmica bem como entre os principais partidos.
(Lembro de passagem que durante este período como gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública autorizei a compra de milhares de armas pelas polícias, que na minha opinião são as únicas que devem portá-las)

Na época da aprovação do Estatuto acabara de assumir a coordenação da CAP-SSP, em São Paulo, onde os homicídios começavam a declinar lentamente desde a Lei de 1997, que transformou o porte ilegal de contravenção em crime. Os dados de 2004 começaram a chegar e as diferenças eram nítidas: apesar do aumento das revistas e das buscas e apreensões, a polícia conseguia apreender cada vez menos armas. A proibição do porte e o aumento da punição e da fiscalização fizeram as armas sairem de circulação. Todas os indicadores mostravam isso: o número de armas perdidas pela população também cairá, junto com as apreensões de armas ilegais.

Como consequência da diminuição das armas em circulação – a queda dos homicídios medidos pelo Infocrim e pelo Datasus – teve uma aceleração abrupta após dezembro de 2003. Estamos falando aqui de uma mudança de patamar, de uma quebra de nível na série histórica. Usando series temporais e diversos procedimentos metodológicos (teste de Chow, análise de intervenção, modelos ARIMA, etc.) estimamos em 2005 que o Estatuto diminuiu em -12,9% o volume de armas apreendidas no Estado, em -14,8% os homicídios na Capital, em -17% as agressões intencionais com armas de fogo (Datasus), em -17,8% os latrocínios no Estado e em 25,9% na Capital.

Nesta época, munido dos dados do Infocrim, passei as estudar a morfologia da queda e a investigar todos as eventuais hipóteses para explicar o que ocorria em São Paulo, que apresentava quedas na criminalidade similares às festejadas quedas de Nova Iorque, Cali ou Bogotá. Os dados mostravam que a queda era generalizada no Estado, abrupta e ocorria em áreas ricas e pobres, afetava jovens e velhos, homens e mulheres, brancos e negros. A data do ponto de inflexão, a velocidade, força e características da queda sugeriam que o Estatuto do Desarmamento era o melhor candidato para explicar o fenômeno em São Paulo, ao lado de outras variáveis de alguma importância, como a demografia, uso do Infocrim, aumento na resolução de crimes de homicídio, melhorias na gestão das polícias, etc.

Diversos estudos, utilizando fontes e metodologias diferentes, corroboram o que encontrávamos na SSP. O Ministério da Saúde estimava em 2006 que o Estatuto invertera a tendência de crescimento linear da década anterior e que o impacto era da ordem de 24%. Um grupo de epidemiologistas publicou na Health Affairs um estudo relacionando a queda no número de hospitalizações ao Estatuto. Utilizando dados da SSP-SP, diversas teses acadêmicas corroboravam os achados iniciais, como a de Gabriel Hartung, de Marcelo Justus dos Santos e de Daniel Cerqueira, três economistas que utilizam econometria pesada para garantir a robustez dos achados. Todos eles encontraram impactos significativos do Estatuto do Desarmamento sobre os homicídios em São Paulo.
Os ganhos não são permanentes. As armas estão guardadas nas casas e quando crescem os roubos e aumenta a sensação de insegurança, elas voltam a circular, como durante a crise econômica de 2009, que criou um “soluço” na tendência de queda dos homicídios em São Paulo. Trata-se de uma análise racional de custo-benefício: quando o cidadão se sente inseguro, encara os riscos de andar armado
Isto ajuda a entender porque os efeitos do Estatuto foram desiguais pelo país. Num dos últimos escritos sobre o tema num artigo para a Revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugeri em 2011, com o apoio de evidências, que os efeitos foram maiores nos Estados do Sudeste e menores no Nordeste em razão das diferentes conjunturas e dinâmicas socioeconômicas destas regiões: onde o crescimento econômico foi acelerado, como nas Capitais nordestinas, houve um aumento dos crimes patrimoniais e da sensação de medo, que levou a população a circular com suas armas e consequentemente à um crescimento dos homicídios na Região. Não havia “clima” para falar em desarmamento, ao contrário do Sudeste, onde a estabilidade e mesmo queda de alguns crimes contribuiu para o sucesso da nova Lei.

Em linhas gerais, isto foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios; o estrago é feito pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na mão dos criminosos; portar armas aumenta o risco de ser ferido ou morto num assalto; tanto a Lei 4937/97 quanto o Estatuto do Desarmamento tiveram efeitos significativos sobre os homicídios em São Paulo; estes efeitos são tanto maiores quanto melhor for a implementação e mais favorável a conjuntura.

Nestes 30 anos de segurança pública, não encontrei nenhuma outra medida ou política pública que tivesse efeitos tão significativos sobre a criminalidade quanto o Estatuto teve. Agora o lobby das armas, aproveitando a conjuntura anti-governo, quer acabar com umas das poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país. Pouco adianta falar em Pacto para a redução dos homicídios se o Estatuto for revogado. Os homicídios irão retomar com toda a força a trajetória linear de crescimento observada desde os anos 80 até 2003. Foi o que ocorreu durante a farra das armas. É o que vai acontecer novamente caso o Estatuto seja revogado, na convicção quase unânime da comunidade acadêmica que se debruçou sobre o tema. Se está ruim com ele, ficará muito pior sem.

2 comentários:

  1. Prezado dr. Kahn,

    Interessantíssimo seus dados e seu depoimento. Gostaria de saber se poderia me enviar por e-mail os estudos levantados concernentes a este material de dados que você enuncia, como sou estudante de mestrado em economia, conheço boa parte das metodologias citadas por você e seria muito interessante para minha tese ter alguma experiência com análises de políticas públicas com viés empírico.

    flcamargo90@gmail.com

    Grato,

    Felipe Camargo

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  2. Olá Felipe, leia então os economistas. Seguem os links para as 3 teses de douturado mencionadas:

    Daniel Cerqueira:http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/download/Concurso0212_33_premiobndes_Doutorado.pdf

    Gabriel Hartung: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6616/Tese%20de%20Doutorado%20-%20Gabriel%20Hartung.pdf?sequence=1

    Marcelo Justsus: http://portalrevistas.ucb.br/index.php/EALR/article/viewFile/3%20EALR%20307/3%20EALR%20307

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