Reunião de artigos e pesquisas sobre armas de fogo no Brasil, escritos de 1999 pra cá.
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Prefácio
O título deste
livro faz uma alusão óbvia ao livro “Mentiram para mim sobre o desarmamento”, livro
de Benedito Barbosa Junior (Vide Ed, 2015), com quem dialogo democraticamente
sobre a questão das armas de fogo desde os anos 90. Nosso último encontro foi
em setembro de 2015, no Espaço Democrático, fundação na qual sou conselheiro e onde
mais uma vez o Estatuto do Desarmamento e seus efeitos foram discutidos de
forma cavalheiresca e respeitosa, como deve ser. A íntegra do encontro pode ser
lida aqui: http://espacodemocratico.org.br/a-sociedade-armada-e-mais-segura/
Graças ao big
data e ao algoritmo de recomendações, quem entrar no site da Amazon para
procurar por seu livro, verá que os leitores que o compraram também compraram
os livros: “Pare de acreditar no governo”, “Não, Sr. Comuna”, “Como ser um
conservador”, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, “Maquiavel
pedagogo”, “O jardim das aflições”, “As ideias conservadoras”, “A nova era e a
revolução cultural” e “Ponerologia – psicopatas no poder”. Todos eles, como
sugerem os títulos, tratam do pensamento conservador e são claramente contra as
esquerdas e o pensamento de esquerda.
Existem várias
outras evidências desta associação espúria entre defesa das armas e pensamento
conservador. O livro tem uma fanpage no Facebook, de onde extrai 2184 comentários
de posts publicados entre maio e outubro de 2017. A preocupação com a segurança
pessoal e pública estava presente, é claro, mas em nada menos que 265 vezes
encontramos a presença nos comentários de termos como: ESQUERDA, COMUNISTA, SOCIALISTA,
LULA, VENEZUELA, ESQUERDISTA, COMUNISTAS, MST, COMUNISMO, DILMA, ESQUERDISTAS, MARXISTA,
BOLIVARIANA, ESQUERDOPATAS, MORTADELA S,
SOCIALISTAS, CENTRO-ESQUERDA, CHAVEZ, VERMELHOS, FREIXO, FHC e outros do mesmo
teor. Sem incluir ai as dezenas de mensagens favoráveis a Bolsonaro e outras
lideranças e ideias conservadoras. O que fazem estas expressões num debate
sobre desarmamento? Alguém acredita seriamente que há um complô comunista em
andamento e que o desarmamento civil é uma estratégia para que o golpe não
encontre resistência da população?
Eu, que
politicamente considero-me um centrista radical e que filosoficamente advogo
pela separação entre ciência e política, fico sempre me perguntando por que
raios a questão do desarmamento – que em boa parte envolve um debate técnico
sobre seus efeitos individuais e coletivos – foi polarizada desta forma:
defensores do desarmamento seriam invariavelmente “de esquerda”, tiranos que
conspiram contra o direito de defesa para chegar ao poder. A própria ideia do
título, “mentiram para mim”, passa uma ideia de conspiração. Mentir é ato
planejado, com objetivos claros. E, além disso, envolve a questão de saber
“quem mentiu”? Quem são “eles”? O governo? A ONU? Os institutos de pesquisa? Os
Russos? A CIA?
Esta
associação entre liberação das armas e pensamento conservador e restrição às
armas e pensamento de esquerda se explica por algumas razões: basicamente, ela
foi importada para o Brasil do debate norte americano e das divergências entre
Republicamos e Democratas na forma de tratar a questão. Encontramos ecos
nítidos deste debate na campanha do referendo de 2005, onde os defensores da
liberação das armas lançaram mão dos mesmos argumentos utilizados nos Estados
Unidos pela NRA (National Rifle Association) e pelos grupos conversadores para
combater a regulação das armas de fogo, embora não tenhamos aqui nada parecido
com a Segunda Emenda: tratar-se-ia de um direito individual inalienável, de uma
interferência indevida do Estado, da defesa contra a tirania, etc.
Acrescente-se a isso o fato do Estatuto do Desarmamento ter sido aprovado, por
acaso, no primeiro ano da gestão Lula. E adicionalmente o fato das entidades de
defesa dos direitos humanos terem se engajado neste debate em favor do controle
das armas de fogo. Em conjunto, este contexto ajuda a entender porque o debate
sobre as armas fugiu das mãos dos especialistas e das questões técnicas e
metodológicas e extrapolou para o debate político, onde raramente prevalecem os
argumentos científicos e racionais.
Apesar do título
do livro, não pretendo argumentar que o que apresento seja “a verdade” e os
argumentos e evidências contrárias sejam todas “mentirosas”. Diferente da
política, verdade em ciência é sempre probabilística e provisória, baseada nas
melhores evidências disponíveis. Os esforços dos acadêmicos convergem para o
falseamento das próprias hipóteses e para discussões sobre validade e
confiabilidade dos dados enquanto a lógica do pensamento político busca apenas argumentos e evidências
que suportem suas hipóteses. Na esfera política o que interessa é vencer o
debate e não estabelecer a veracidade dos fatos. Esta é a grande diferença
entre o debate na academia e na política e um dos motivos pelos quais não
existe um verdadeiro diálogo entre armamentistas e desarmamentistas.
Meu ponto aqui
é que a discussão deve ser feita em outras bases, levando em consideração
argumentos factuais sobre o impacto das armas de fogo na segurança pública e
não argumentos político ideológicos. Não existe nenhum complô comunista para
tomar o poder à força. O que existe são 60 mil mortos por ano no país, a
maioria com uso das armas. É ai que o debate deve se concentrar, baseado em
evidências empíricas e não numa cruzada anticomunista ou contra a tirania, que
explora medos imaginários.
Os artigos
aqui apresentados procuram analisar a questão das armas numa perspectiva
técnica ou a mais técnica possível, uma vez que neutralidade axiológica é
sempre um ideal a ser buscado, embora fique claro meu posicionamento e
militância em favor das restrições às armas de fogo. Não se trata de uma questão de direita ou de
esquerda, mas de saber o que é melhor, do ponto de vista da sociedade como um
todo, para a segurança pública.
Os textos são
apresentados em ordem cronológica, cobrindo o período de 1999 a 2017 e mostram
alguma evolução no tratamento e entendimento do tema. O material é variado,
incluindo artigos de jornal, entrevistas, trechos de pesquisas acadêmicas, posts
de blogs e outros. Acredito que no conjunto dão uma boa visão de como tem
ocorrido o debate sobre as armas nas últimas duas décadas no Brasil e
apresentam dados que em sua maioria corroboram sistematicamente o impacto da
regulação das armas na diminuição dos homicídios e os efeitos positivos
trazidos pelo Estatuto. É apenas neste sentido que o livro pode ser considerado
uma resposta ao “Mentiram pra mim sobre o desarmamento”. Uma resposta significa
que alguém do outro lado está ouvindo, o que nem sempre é o caso. Se as
evidências apresentadas conseguirem convencer alguns da importância de
restringir a quantidade de armas em circulação para a segurança, já terá valido
o esforço.
São Paulo,
outubro de 2017
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