Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Como bom comunista, Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, estava na Suíça quando escreveu O imperialismo, fase superior do Capitalismo, em 1916, em meio à Primeira Grande Guerra. Revelando a mais absoluta falta de consciência de classe, proletários de todo o mundo matavam-se mutuamente nas trincheiras europeias. E operários de elite dos países capitalistas adiantados, subornados com bons salários garantidos pelos superlucros auferidos das colônias e semicolônias, uniam-se às suas burguesias nacionais para explorar operários dos países atrasados. Para complicar ainda mais o cenário, a revolução socialista parecia mais provável na atrasada Rússia do que nos países capitalistas avançados, como Inglaterra e França, onde se deveria esperá-la.
O marxismo precisava, de algum modo, explicar esta nova e complexa realidade em que as classes não se comportavam do modo como deveriam se portar. O conceito de Imperialismo procurava dar uma explicação coerente para as guerras nacionais, para o aburguesamento da aristocracia operária e outros fenômenos não previstos originariamente.
O século 20 se iniciava e o capitalismo não entrara em crise. As empresas se expandiram dando origem a grandes monopólios, trustes e carteis. Lançando mão das estatísticas burguesas, Lenin mostra o fenômeno da concentração da produção nas mãos de poucas empresas, cada vez maiores. A mudança da quantidade gerava uma mudança de qualidade e o monopólio surgia inevitavelmente nesta fase superior do capitalismo, obedecendo a uma lei inexorável. O monopólio enterrava o capitalismo clássico da época da livre-concorrência, estabelecendo acordos de venda, partilhando os mercados, fixando a produção e estabelecendo preços.
Os bancos passavam pelo mesmo processo de concentração e assumiam um novo papel na economia, passando de meros intermediários a aceleradores dos processos de concentração de capital e constituição de monopólios. O entrelaçamento dos bancos com a indústria dava origem ao capital financeiro, que predomina sobre as demais formas de capital.
Mas nem tudo era negativo. Assim como Marx reconheceu o caráter revolucionário do capitalismo, Lenin enxerga nos trustes da fase imperialista uma forma superior de produção, que gera economias de escala e inovações tecnológicas. Em última análise, o monopólio promovia o progresso na socialização da produção, planificada por alguns poucos capitalistas.
De particular interesse para os latino-americanos é a explicação desenvolvida por Lenin sobre como o imperialismo cria uma rede internacional de dependências entre os países. Esta explicação inspirou posteriormente a criação da conhecida Teoria da Dependência, nos anos 1960, numa tentativa de compreender os entraves ao desenvolvimento dos países latino-americanos, pretensamente originados dessa situação de dependência. Curiosamente, a teoria atingiu seu auge de influência nos anos 1970, precisamente enquanto o Brasil crescia a taxas chinesas… Note que Lenin não fala que os países atrasados, colônias e semicolônias, tornam-se dependentes dos países mais avançados, mas fala de uma rede de dependências, pois os países desenvolvidos, neste mercado mundial criado pelo capitalismo, também dependem dos países atrasados para matérias-primas, mão de obra barata, mercado de consumo, envio dos excedentes de população e outras necessidades.
O capitalismo monopolista moderno, lembrava o camarada Lenin, não exporta apenas mercadorias, mas também precisa exportar capitais excedentes para os países atrasados. Nestes países, os lucros são maiores, pois os capitais são escassos e os salários, matérias-primas e fatores de produção são mais baixos.
Não se tratava necessariamente de uma exportação por vias violentas! Como descreve Lenin, “um bom número de Estados, desde a Espanha até os Balcãs, desde a Rússia até à Argentina, Brasil e China, apresentam-se, aberta ou veladamente, perante os grandes mercados de dinheiro, exigindo, por vezes com extraordinária insistência, a concessão de empréstimos” (p. 82). Isto criava relações especiais de transação econômica entre credores e devedores, relações especiais que corroíam as bases da livre-concorrência, criticava Lenin.
O mundo inteiro estava já partilhado entre as grandes potências – sejam elas velhas, como Inglaterra e França, potências capitalistas jovens, como Alemanha, Estados Unidos e Japão, ou países pré-capitalistas, como a Rússia de 1916 – e o capitalismo monopolista financeiro não fazia mais do que exacerbar esta partilha. As grandes potências tornavam-se, aos poucos, países rentistas e parasitários, que viviam às custas dos países atrasados, enredados por sua vez numa teia de dependências financeiras e diplomáticas. Assim, embora a rede de dependência envolva países avançados e atrasados, há uma relação de subordinação dos últimos, principalmente no caso das colônias, onde a subordinação tomava por vezes a forma de violência e perda de independência política.
O ano era 1916, um ano antes da Revolução Russa, e Lenin estava prestes a trocar “as armas da crítica pela crítica das armas”. Isto provavelmente explique a perigosa mistura de análise científica e exortação política existente no texto. A militância talvez tenha forçado o autor a adotar algumas falsas premissas e ofuscado sua visão do processo histórico. Entre elas as premissas de que a subalimentação das massas é uma pré-condição básica para o modo de produção capitalista. De que o capitalismo monopolista é incompatível com a esperança de paz entre os povos ou que o capital financeiro implica na perda de independência política dos povos submetidos a ele.
Lendo o livro um século depois, parece que o verde da vida superou o cinza da teoria leninista e que o social-chauvinista Kautsky tinha lá seus lampejos de razão. O capitalismo não precisa de massas esfomeadas, que produzem pouco e não consomem. Tampouco precisa da guerra entre os povos ou da subordinação política das colônias. Estes foram antes ciclos históricos do que necessidades intrínsecas ao modo de produção capitalista.
Apesar da concentração industrial e bancária, a concorrência continuou sendo a base do funcionamento do sistema. Sistema que gera riqueza crescente, de modo que não se trata de um jogo de soma zero onde o enriquecimento de um pais ou camada social se faz às expensas de outro país ou camada social. Existe “extração do excedente”, mas ele é grande o bastante para ser repartido e, de resto, não seria gerado sem o aporte de capital e tecnologia externos. Os países atrasados não estavam condenados eternamente ao atraso e a subordinação política, econômica e diplomática e de fato neste século as taxas de crescimento econômico e social em muitos deles foram superiores às dos países adiantados.
Talvez a culpa pelo subdesenvolvimento latino-americano não se deva tanto aos obstáculos externos, como as esquerdas imaginavam nos anos 1960 e 1970 e deva ser buscada também nas opções políticas e econômicas desastrosas tomadas pelas elites nacionais, inclusive as operárias. Embora sejamos todos “dependentes” de tecnologia e capitais e passando pela mesma conjuntura internacional, a taxa de crescimento do PIB em 2017 é de 3,7% na Bolívia, 2,8% no Uruguai, 2,7% na Argentina, 2,4% no Peru, enquanto no Brasil a expectativa gira em torno de 0,3% e na Venezuela ao redor de -18%. Talvez uma “teoria da incompetência” explique melhor nossas mazelas do que o imperialismo. O imperialismo é um tigre de papel. Somos nós mesmos os maiores culpados pelo nosso subdesenvolvimento e jogar a culpa no “imperialismo” e na “exploração dos países desenvolvidos” é uma forma de escamotear esta incompetência.
O imperialismo, fase superior do Capitalismo foi um dos livros relacionados na bibliografia do artigo A visão dependentista, do economista Luiz Alberto Machado.
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