segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Jogos de azar: problema fiscal ou de saúde pública?

 

O problema parece ser tratado exclusivamente pela ótica fiscal, sem levar em conta os custos individuais e coletivos da expansão da jogatina, escreve Tulio Kahn

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Quase toda atividade humana traz o risco de ser realizada de forma excessiva. Existem pessoas que fumam demais, bebem além da conta, jogam em demasia, consomem drogas exageradamente, dedicam muito tempo ao celular e às redes sociais. Há também as que amam demais (sim, isso é um problema), trabalham demais, dedicam-se exageradamente aos esportes, gostam de sexo mais do que seria aceitável ou compram demais – o que pode ser um problema sério quando não se tem dinheiro. Tudo feito em demasia – mesmo atividades socialmente aceitáveis – pode implicar em riscos e consequências danosas.

Em todas as atividades há um limite entre o normal e o patológico e uma porcentagem “diminuta” de pessoas que tendem a abusar do comportamento. Chamamos de “vício” um comportamento compulsivo em que uma pessoa desenvolve uma dependência física, psicológica ou emocional por uma substância ou atividade, apesar das consequências negativas associadas a esse comportamento. O vício apresenta características como dependência, compulsão, tolerância (precisa de doses cada vez maiores), síndrome de abstinência e um impacto negativo sobre a vida diária da pessoa, entre outras características.

Não se trata apenas de uma questão privada, uma vez que os vícios produzem também externalidades coletivas; gastos em saúde e segurança, perda de produtividade no trabalho, criminalidade, ruptura familiar, marginalização social, acidentes de trânsito e perda de rendimento escolar, para mencionar apenas algumas principais.

Essas externalidades sociais sublinham a importância de abordar os vícios não apenas como questões de saúde individual, mas também como problema social que requer intervenções políticas, educativas, econômicas e de saúde pública integradas para mitigar seus efeitos negativos na sociedade. Como em vários outros casos, estamos aqui diante do dilema entre “liberdade individual” x “custos sociais”, que cada sociedade e época decidem à sua maneira.

Algumas destas atividades estão organizadas através de “mercados” legais e ilegais que lucram com o consumo, apesar das tentativas tímidas de evitar o uso abusivo dos consumidores por parte das indústrias. Mesmo o mercado de drogas ilícitas prefere um consumidor moderado e constante ao “nóia”, assim denominado pejorativamente o usuário com extrema dependência em certas drogas, como o crack. Em última instância, “cliente morto não paga” e o abuso pode ser prejudicial para o setor.

Não obstante algumas tentativas de autorregulamentação dos mercados, coube ao poder público os maiores esforços para tentar conter os prejuízos individuais e coletivos dos vícios. Entre as políticas públicas estão as campanhas de prevenção e conscientização, o tratamento e a reabilitação dos dependentes, a regulação e controle de substâncias nocivas, políticas de preços e impostos, parcerias com o terceiro setor e o setor privado, pesquisas de monitoramento e avaliação de programas, entre outras.

Algumas destas políticas são custosas e estes custos, obviamente, deveriam ser arcados pelas indústrias que se beneficiam da exploração das atividades que causam dependência, incluindo aí indústria de álcool e tabaco, setor de jogos, medicamentos, empresas de internet e redes sociais. Destaque-se que um dos argumentos para a legalização das drogas leves nos estados americanos é precisamente a possibilidade de poder taxar o setor e dedicar parte dos impostos ao tratamento da dependência.

Temos visto no Brasil um aparente crescimento do vício em apostas on-line, regularizadas a partir de nova legislação adotada em 2018 e 2023, que permitiram o funcionamento das bets e jogos como o popular “jogo do tigrinho”. Como sempre, os dados de pesquisas sobre o problema do vício em jogo (ludomania) são escassos e o problema parece ser tratado exclusivamente pela ótica fiscal, pelo Ministério da Fazenda, onde um estado gastador procura ampliar fontes de arrecadação, sem levar em conta os custos individuais e coletivos da expansão da jogatina.

As pesquisas sobre o problema são escassas e defasadas. Dissertação de mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de 2009, mostrou que 1,6% dos adolescentes entrevistados tinham problemas com jogos de azar (Spritzer, 2009). Um estudo antigo conduzido pela Unifesp, em 2013, estimou que cerca de 1,3% da população brasileira tinha problemas com o jogo, sendo que aproximadamente 0,4% da população poderia ser classificada como viciada, apresentando sintomas de jogo patológico. Esses números equivalem a cerca de 850 mil a 2,8 milhões de pessoas em uma população de aproximadamente 213 milhões de brasileiros (Laranjeira, 2013). É provável que a incidência tenha aumentado com a regularização dos cassinos on-line, mas não temos estudos robustos sobre o tema com dados atualizados. Os dados mais atuais são do Ministério da Saúde e mostram que, entre 2018 e 2023, o número de pessoas atendidas por jogo patológico no SUS aumentou, saindo de 108 para 1,2 mil.

O Raio-X do Investidor Brasileiro é uma pesquisa quantitativa anual, realizada em parceria com o Datafolha. O levantamento ajuda a traçar o perfil e o comportamento da população com relação às suas finanças. Na 7ª edição, em 2023, foram entrevistados 5.814 pessoas e incluído um levantamento sobre o uso de aplicativos de apostas esportivas on-line, popularmente conhecidos como bets. Entre outros resultados, a pesquisa constatou que 22,4 milhões de brasileiros usam apps de apostas on-line (14% da população brasileira), 40% consideram como uma chance de ganhar dinheiro rápido em momentos de necessidade e 22% consideram as apostas online como um tipo de investimento…

Cruzando os dados da pesquisa Datafolha, observamos que entre os jovens de 16 a 24 anos, a porcentagem dos que afirmam nunca ter usado aplicativos de apostas cai para 52%, em contraste com 78,6% das pessoas com mais de 60 anos. Nesta faixa mais jovem, 6,5% dizem ter usado estes aplicativos frequentemente em 2023. O uso frequente é maior também entre os homens, pessoas com ensino médio e maior no Nordeste – em contraste com o Sul. O uso “frequente” vai diminuindo progressivamente conforme a classe social do entrevistado.

O uso frequente cai de 7,2% na classe A para 2,2% na classe D/E, assim como o uso “de vez em quando”. Em contraste, as porcentagens de não usou em 2023, raramente usou ou nunca usou, crescem percentualmente com a diminuição do status social. O qui-quadrado de 67,7 é significativo com prob >.000

Na amostra total, 19,8% afirmaram concordar totalmente com a afirmação “eu já briguei com amigos e familiares por causa de dinheiro. Esta porcentagem sobe para 33% no caso dos que apostam frequentemente em apostas esportivas do tipo bet.

A regularização dos jogos de azar deveria ter sido precedida por revisões da literatura e amplos estudos nacionais sobre o tema, que pode assumir proporções catastróficas – principalmente entre jovens de renda alta e gênero masculino – se não forem criadas políticas públicas para lidar com o problema. Essa revisão deve incluir também estudos robustos sobre as melhores políticas públicas para lidar com os efeitos indesejáveis do jogo. Isso inclui mecanismos para identificar jogadores com transtornos, tratamento dos dependentes, restrição para jogadores patológicos, sistemas de autoexclusão, softwares de bloqueio, bloqueio de operações bancárias, limitação ou proibição de propaganda, campanhas de conscientização, treinamento do pessoal de saúde, entre outras.

É preciso tratar do problema como uma questão de saúde pública, assim como a dependência de álcool e drogas. Trata-se de uma indústria bilionária, com grande poder de lobby, que deve ser pesadamente taxada e regulada – e, no limite, proibida, como aconteceu com os cassinos e jogos de bingo no passado. É preciso ponderar aqui, como sempre, as questões de liberdade individual, fiscais, o risco de alimentar um mercado ilegal de jogos e os danos individuais e custos sociais da liberação indiscriminada dos jogos de azar. Também são necessários critérios objetivos para definir que tipo de jogo é permitido ou proibido, lembrando aqui que corridas de cavalo, loterias e jogos on-line são permitidos no Brasil, enquanto bingos, cassinos e jogo do bicho, não. Isso sugere que critérios arbitrários são utilizados, dependendo de fatores culturais, fiscais, deontológicos, capacidade de persuasão dos setores, entre outros motivos menos nobres.

O caso da indústria de tabaco pode ser um exemplo positivo para levar em consideração, onde políticas públicas conseguiram reduzir de forma efetiva o consumo de cigarros no Brasil nas últimas décadas, regulando uma das indústrias mais poderosas do mundo.

Mas foi preciso milhares de pesquisas sobre os efeitos maléficos do fumo e milhares de mortes antes o tabaco passasse a ser controlado em quase todo o mundo. Ao que tudo indica e conhecendo a forma como as questões são tratadas no Brasil, o problema deve piorar muito antes que qualquer ação efetiva seja tomada, pelo que se vê pela falta de critérios e pela ótica preponderantemente fiscal com que a liberalização dos jogos foi aprovada no País. Querem apostar?

 

Referências

Spritzer, Daniel Tornaim . Problemas relacionados a jogos de azar em adolescentes brasileiros : participação, prevalência e fatores associados. Dissertação de mestrado, UFRS, 2009

Laranjeira, R., Madruga, C. S., Pinsky, I., Caetano, R., Mitsuhiro, S. S., & Ribeiro, W. (2013). Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD): Padrões de consumo de álcool na população brasileira. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (INPAD), Universidade Federal de São Paulo.

Souza, 2009. Jogo patológico e motivação para mudança de comportamento

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