quinta-feira, 24 de setembro de 2020

“Elementar, meu caro Watson” – a ampliação das políticas públicas baseadas em evidências

 

“Evidence based” é o conceito do momento na segurança pública. O BID lançará em breve uma plataforma digital de políticas públicas de segurança baseadas em evidências e em novembro a UFC organizará um seminário sobre o tema. Há teses revendo o que se produziu no Brasil com evidências robustas e os planos de governo usam o termo a torto e a direito. (Kopittke, Alberto Liebling. "Segurança pública baseada em evidências: a revolução das evidências na prevenção à violência no Brasil e no mundo." (2019).




O contexto da pandemia talvez seja propício para explorar o conceito pois deixou bastante claro a diferença entre as políticas baseadas em ideologias – contra o isolamento social, máscaras e a favor da cloroquina – e as políticas baseadas em evidências preconizadas pelas OMS. Brasil e EUA são exemplos da primeira e não por acaso estão entre os casos mais graves de disseminação da doença no mundo. Ignorar evidências mata.

As áreas da saúde e da educação foram talvez as primeiras a abraçarem a ideia de políticas baseadas em evidências. São áreas que tradicionalmente valorizam o conhecimento e se preocuparam historicamente em montar bases de dados e monitorar indicadores, fazer avaliações, planejamentos de longo prazo, estipulação de metas, análises de custo benefício, projeções e outras ferramentas de administração com base em dados empíricos.

Nos países desenvolvidos o conceito de políticas “evidence based” já chegou à área da segurança pública. As polícias disponibilizam dados, fazem projetos piloto, contratam ou realizam internamente avaliações com rigor científico, policiais frequentam as universidades ou especialistas acadêmicos são contratados para trabalharem na polícia como analistas e avaliarem as estratégias e táticas utilizadas. Fundos nacionais significativos são destinados a avaliar as políticas de segurança.

O cenário no Brasil – com poucas exceções – é bem distante disso. Políticas públicas de segurança raramente foram avaliadas sistematicamente e seguem, como os criminosos, como “atividades de rotina”. E posturas ideológicas frequentemente servem de sustentação para justificar políticas equivocadas. É o caso por exemplo da política de flexibilização de armas de fogo para a população. Embora as análises tenham mostrado à exaustão que mais armas em circulação aumentam homicídios e suicídios, é comum que se defenda a flexibilização argumentando para o filosófico “direito ao porte”[1]. Assim também, preponderam nos discursos sobre as políticas de segurança as ideologias do “excesso de direitos aos criminosos”, da “leniência das punições”, da “periculosidade da maconha”, da “eficiência das armas para se prevenir contra os criminosos”, da “necessidade contínua de se contratar mais policiais”. “Polícia comunitária” e “participação cidadâ”, por outro lado, são apenas slogans publicitários e ineficientes pois polícia tem que correr atrás de criminosos. “Atendimento social” é pra secretaria de assistência e não tem nada a ver com segurança. Ditados como “bandido bom é bandido morto” e “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, ilustram bem outros aspectos das ideologias reinantes nesta esfera e que acabam por influenciar as políticas de segurança.

Desconfio que este viés filosófico-ideológico no trato das políticas públicas, como já discutimos em outro lugar, são fruto do espírito bacharelesco da administração pública brasileira, tão bem descrito pelos sociólogos dos anos 30 e 40. Aquela tendência de reduzir tudo ao universo jurídico, de imaginar que a palavra escrita e as “Leis” tem o poder mágico de mudar o mundo, de tratar os casos individualmente, de abusar da retórica e dos sofismas para resolver problemas concretos, de reduzir o comportamento humano ao seu aspecto moral, de achar que a ciência da hermenêutica é superior às outras ciências, auxiliares do Direito, do menosprezo pelos números e pelas pesquisas. Embora exista hoje a jurimetria, o direito é ainda majoritariamente uma ciência dedutiva e “text based”, enquanto políticas “evidence based” são do tipo indutivo.  

Esse perfil bacharelesco-filosófico dos administradores públicos e legisladores brasileiros é comum a todas as áreas da gestão, mas bastante pronunciado na área de segurança pública. Com efeito, é preciso ser bacharel em direito para ser delegado da Polícia Civil ou da Polícia Federal, e grandes juristas ou operadores do direito são os tradicionais escolhidos para chefiar o Ministério da Justiça ou Secretarias de Segurança Pública. Reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal são entendidas no Brasil como políticas de segurança e mais relevantes do que reformas estruturais no sistema de justiça criminal.

O curioso é que segurança pública tinha tudo para ser pioneira e abraçar com entusiasmo a ideia de políticas baseadas em evidência! As polícias em todo mundo foram as primeiras instituições, ainda no século XIX, a ousarem com a ideia de uma polícia técnico-científica, baseada em provas materiais e evidências concretas. O trabalho do perito é similar ao de um pesquisador científico: ele coleta, compara, analisa, conclui com base probabilística. Logo após a criação, as polícias foram as primeiras instituições a adotarem o reconhecimento pelas impressões digitais ou fotográfico. Os peritos trabalham há anos com bancos de dados, comparações balísticas, exames de DNA, espectrômetros de massa. Não por acaso, o procedimento policial chama-se “investigação”, como na academia, e seu executor é um “investigador”.

 Mas por alguma razão que mereceria ser explorada, o espírito bacharelesco preponderou nas instituições policiais, sobrepondo o espírito científico das primeiras polícias. O problema da perícia foi usar estes recursos científicos para analisar apenas casos individuais, negligenciando geralmente a análise das macro políticas de segurança. A polícia científica se preocupou em saber se aquele indivíduo estava intoxicado no momento do assassinato e não com o papel do álcool como fator de risco para a segurança. Se o ferimento naquele cadáver foi feito por instrumento perfuro-contundente e não com a contribuição das armas para a violência. Ficaram no micro e deixaram a macro política de segurança nas mãos dos doutores juristas, que usam gravata e se expressam melhor do que engenheiros ou biólogos. Como sempre, não basta conhecer, é preciso saber vender sua expertise com convicção. É o que os advogados aprendem a fazer no júri, mesmo que o cliente seja culpado (ou a política preconizada seja equivocada...).

A ideia de aplicar as técnicas da ciência e dados empíricos para a avaliação da macro política de segurança começou a tomar força a partir dos anos 80, em razão de um conjunto de fatores. Houve uma convergência entre uma massa de cientistas sociais se interessando pelo problema da criminalidade e da violência, barateamento de computadores e softwares, disponibilização pública de dados, abertura na gestão das instituições de segurança, crise nas políticas tradicionais de segurança, quando a sociedade se deu conta que contratar mais policiais e construir mais presídios não estava sendo o suficiente para lidar com a criminalidade. Desde os anos 30 tivemos cientistas sociais analisando crimes e políticas de segurança com base em estudos empíricos, mas de modo episódico. Nos anos 80 em diante assistimos à massificação do fenômeno nos países desenvolvidos e nos 90 a tendência chega ao Brasil. Alguns cientistas sociais chegaram mesmo a ocupar cargos de relevância na gestão policial de alguns Estados e a palpitar sobre políticas de segurança....A diferença é que chamávamos a prática apenas de “análise estatística” e éramos somente sociólogos ao invés de “data scientists”

A partir desta época passou a ser possível testar algumas teorias criminológicas e avaliar as estratégias de segurança. A ciência então passa a analisar não apenas criminosos individuais, mas padrões coletivos. Foi deste caldeirão que surgiram ideias como policiamento orientado a problemas, policiamento de hot spots e hot times, fiscalização da desordem física e social, policiamento preditivo, o uso de pesquisas de vitimização, análise das “jornadas para o crime”, identificação de fatores de risco e fatores protetivos, políticas preventivas como as terapias cognitivas, os algoritmos para priorização do atendimento de mulheres vítimas da violência e centenas de outras estratégias e táticas para lidar com o crime.

Os cientistas sociais começaram a mostrar um quadro geral da segurança pública que os inquéritos e laudos individuais não permitiam ver: as áreas da cidade não são igualmente propensas ao cometimento do crime, existem perfis específicos de criminosos e vítimas, álcool e armas são fatores de risco relevantes e assim por diante. Este conhecimento serviu de fundamento para traçar políticas de segurança mais eficientes e eficazes.

O fato é que o uso de evidências científicas para avaliar e traçar políticas está longe de ser uma novidade nas polícias, onde existe toda uma longa tradição de investigação forense, que foram tratadas como ciências auxiliares do direito, espelhando a hierarquia da organização policial.

Creio que a tendência daqui para frente – e a epidemia talvez contribua para isso – é que todas as políticas tenham que ter, obrigatoriamente, algum fundamento teórico e empírico para que sejam adotadas em larga escala e financiadas com recursos públicos. Alguns estados norte americanos adotaram regras que punem financeiramente os gestores que ignorarem as evidências existentes, ao implementar uma política pública. As novas gerações de policiais são muito mais abertas para a sociedade e a academia em particular, mas é preciso maior entrosamento, estimulando policiais a frequentarem as universidades e intercâmbios com institutos de pesquisa.

Parte significativa dos recursos deve ser reservada para estudos, bases de dados, avaliações, monitoramento de indicadores, seminários, treinamentos. Isto também faz parte, em sentido amplo, do trabalho de “Inteligência”, que não se resume a colher informações sobre criminosos. A ampliação das políticas de segurança baseadas em evidências pelas polícias são uma garantia para a sociedade de que as instituições estão maximizando seus recursos.

 



[1] Os homicídios vinham em queda nacionalmente, depois do pico de 2017. A situação começa a se inverter no segundo semestre de 2019, quando se inicia novo ciclo de alta, simultaneamente, em diversos Estados. Não por acaso, este ciclo de crescimento coincide com a disparada dos novos registros de armas, depois que o governo federal criou 11 decretos sobre o tema em 2019. Há diversos fatores explicativos – como os confrontos entre traficantes no Ceará - mas o resultado era mais do que esperado, com base nas evidências colhidas nas pesquisas sobre o impacto das armas nos homicídios.


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