A Polícia Militar de São Paulo
chegou a fazer 17 milhões de revistas pessoais em 2017. Como o Estado tem cerca
de 46 milhões de habitantes, isto significa que 37% da população paulista foi,
em algum momento, abordada ou identificada pela polícia.
Dado que as abordagens não são
aleatórias – mas concentradas em determinados bairros, gênero, faixa etária,
classe social e cor – algumas parcelas da população são abordados diversas
vezes num ano.
Este número não inclui apenas as
abordagens a “suspeitos” nas ruas. Pessoas que solicitam o apoio da polícia
pelo 190 ou testemunhas de ocorrências também costumam ser identificadas e
entram neste cômputo. Mas na maioria dos
casos trata-se realmente de um “baculejo”, uma “dura” ou uma “geral”, como os
jovens negros paulistas e os motociclistas, onde me incluo, bem sabem. O fato de que existam tantas
expressões para nomear a prática já é uma evidência eloquente da sua
disseminação. Por outro lado, deixando de lado a questão da legalidade e
oportunidade, como pesquisador creio que é possível que esta seja uma das
razões do sucesso de São Paulo na redução de armas em circulação e outros
delitos...
O número impressiona, tanto mais
quando a legislação especifica que a revista pessoal deve ser feita apenas
quando existe uma “suspeita fundamentada”. O conceito sempre foi utilizado de
forma bastante frouxa pelas polícias. Durante uma entrevista sobre racismo nas
abordagens, um oficial argumentava que não existem pessoas suspeitas à priori,
mas “situações suspeitas”. Quando o repórter pede que ele exemplifique uma
situação suspeita, o policial não titubeou: “por exemplo, quatro negros dentro
de um carro de luxo”.
A suspeita fundamenta exige algo
mais concreto que a mera suspeição: um policial que viu a arma na cintura, que
presenciou a venda da droga, um individuo que foge ao avistar a viatura, etc.
Os tribunais estão cada vez mais rigorosos com relação à prática: recentemente
a 6º turma do STJ considerou ilícita as provas obtidas no caso de um individuo
que foi encontrado com drogas durante uma revista pessoal. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/20042022-Revista-pessoal-baseada-em-%E2%80%9Catitude-suspeita%E2%80%9D-e-ilegal--decide-Sexta-Turma.aspx
Sem entrar no mérito da decisão,
o fato é que por diversos motivos – baixa produtividade (estima-se que apenas
1% das revistas traz algum resultado), prejuízo à imagem das polícias ou maior
rigor da justiça - as revistas pessoais estão caindo drasticamente em São Paulo
nos últimos anos. As revistas pessoais caíram de 4,5 milhões no terceiro
trimestre de 2016 para 2,4 milhões no mesmo período de 2022, uma redução
drástica de 47% no período.
Estas podem não ser as únicas
explicações para a queda na quantidade de revistas. Como ocorre com outros
indicadores, número de revistas é tanto um indicador de “desempenho” ou
performance (o que a polícia faz, input) quanto um indicador de “resultado” (o
que a polícia obtém, output). Em outras palavras, o indicador revistas pessoais
varia com o volume de criminalidade, assim como número de veículos recuperados
acompanha o volume de veículos subtraídos ou volume de drogas apreendidas
seguem as drogas em circulação.
A hipótese aqui é que parte
substancial da queda no número de revistas se deva à queda da criminalidade no
Estado. Com efeito, diversos outros indicadores, tanto de desempenho quanto de
resultados, apontam nesta direção.
Dos 34 indicadores de desempenho,
nada menos que 30 apresentam queda entre 2017 e 2022. As exceções mais nítidas
são os laudos e exames necroscópicos, que tiveram crescimento elevado, não
obstante a queda nos homicídios. Neste caso temos ganhos reais em
“produtividade”, com o aumento dos laudos e exames por homicídio.
É certo que existem outras
explicações para a queda de alguns indicadores: as câmeras corporais ajudam a
entender a queda nos indicadores de letalidade (mas observe-se que mortos e
feridos caem mesmo na folga, quando não existem câmeras). A queda na quantidade
de Policiais Civis, cujo déficit é estimado em 15 mil agentes, pode explicar
por sua vez parte da redução na quantidade de mandados de prisão, termos
circunstanciados e inquéritos. (mas observe-se que houve queda também nas
prisões em flagrante, efetuadas pela PM).
Outra parcela da explicação pode
estar simplesmente na queda da criminalidade no período. Não obstante o
crescimento de algumas modalidades criminais, como os sequestros, estupros de
vulneráveis e furtos – além dos casos de estelionato digital, não divulgado[1]
- vemos uma queda nos crimes de maior volume, como roubo de veículos, roubos,
furtos de veículos ou lesão corporal dolosa. O resultado é uma queda de 18% no
total de crimes violentos e de 11% no total de BOs no período analisado.
Em outras palavras, existe uma
associação entre os indicadores de resultado e os indicadores de desempenho, de
tal forma que a queda dos primeiros explica em parte a queda dos últimos.
A hipótese alternativa é de que a
polícia está diminuindo o ritmo de atuação nos últimos anos, particularmente de
2017 para cá. Nesta conjectura, seria, ao contrário, a diminuição do desempenho
policial que explicaria uma diminuição nos crimes registrados. Com efeito, parte dos registros de ocorrências é fruto de
flagrante policial e uma diminuição no empenho pode provocar uma diminuição na
quantidade de crimes registrados pela polícia.
O caso típico é o de tráfico de
drogas, crimes sem vítimas, onde a quase totalidade dos registros depende da
atuação policial. Ninguém vai do Distrito fazer uma BO de tráfico.
Contra esta hipótese alternativa,
contudo, existem algumas evidências. Diversas modalidades de crimes que não são
majoritariamente flagrantes e que independem do esforço policial estão também em
queda. Além disso, esta queda na criminalidade é generalizada nacionalmente e
não é plausível imaginar que todas as policiais estaduais tenham
simultaneamente decidido reduzir o ritmo de suas atividades ao mesmo tempo.
Cada indicador de segurança
pública tem sua própria dinâmica e examinamos no início diversos fatores que
podem impactar na quantidade de revistas feitas pela PM. Mas com os dados
sugerem, parece existir algo de mais geral, que atinge em São Paulo – e
provavelmente nos demais estados – quase todos os indicadores de desempenho.
Não se trata, portanto de uma piora na gestão dos últimos gestores e a título
de transparência devo dizer aos leitores que faço parte do Conselho de
Segurança da SSP. Certamente há muito a ser feito pela gestão que se inicia,
como a urgente recomposição dos quadros da Polícia Civil.
Mas é provável que a queda
generalizada dos indicadores de desempenho nos últimos anos se deva à queda da
criminalidade. É preciso cuidado na interpretação, pois o reverso também é
verdadeiro: o crescimento dos indicadores de desempenho pode simplesmente
refletir o aumento do crime e não melhora da polícia ou da gestão. A relação
entre os dois tipos de indicadores é complexa e são necessárias análises
adicionais para interpretar a relação entre eles ou os efeitos que as gestões
podem ter sobre eles.
[1]
Note-se que a categoria Crimes contra o Patrimônio cresce 40% no período, em
contraste com os furtos, que crescem apenas 14% e com os roubos, que caem 14%.
Isto provavelmente se deve ao crescimento intenso dos estelionatos e crimes
patrimoniais digitais, cuja mensuração e divulgação é urgente.
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