Como a criminalidade no país tem caído
nos últimos dois anos e as mortes em confronto com a polícia aumentado, os que
defendem a política de confronto com os criminosos procuram associar as duas tendências.
As crianças mortas e feridas, nesta perspectiva, são apenas efeitos colaterais
imprevistos de uma política eficaz...
Com efeito, as mortes em
confronto com a polícia – ou MDIP, mortes decorrentes de intervenções policiais
– praticamente dobraram de 2012 para cá, segundo os dados do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, que traz os dados para ocorrências envolvendo policiais
civis e militares, em folga e em serviço. A média de mortos entre os anos 2012
a 2014 foi de 2560 casos enquanto no período 2016 a 2018 subiu para 5207 casos
(optei por trabalhar com a média de alguns anos pois o número de casos é baixo
em alguns Estados). Isto dá um crescimento médio de 103,4 entre os dois
períodos.
Observe-se desde já que esta
tendência de crescimento não começa com o governo Bolsonaro (ou Witzel no RJ)
mas é anterior, embora a série temporal disponível seja curta. O MS foi o único
Estado a apresentar queda de MDIP no período e há grande variação no percentual
de aumento entre os Estados: os aumentos mais expressivos estão em geral
concentrados nas regiões Norte e Nordeste. O grande salto percentual ocorre em
2014, que teve um crescimento de 42,8% com relação a 2013. Não por acaso, como
notamos alhures, é quando se inicia a recessão econômica, que durou até 2016.
E como foi a tendência criminal
nestes Estados onde mais cresceram os confrontos? Existe alguma relação com os confrontos? Uma resposta mais rigorosa a
esta questão exigiria um design de pesquisa mais complexo, como um painel de
dados por Estado e ano, trazendo tanto os dados dos confrontos quanto de
criminalidade e controlando por uma série de variáveis.
Não faremos isto aqui, onde nos
limitaremos a apresentar alguns indícios de tendências – tomando apenas médias
e correlações bivariadas. Correlações bivariadas, como se sabe, podem ser
enganosas, mas servem como etapa exploratória da análise.
A tabela abaixo traz os Estados,
listados em ordem de grandeza das variações dos homicídios dolosos entre 2001 e
2018. Na parte superior da tabela vemos os Estados que tiveram queda ou
crescimento pequeno nos homicídios e na parte inferior os Estados que tiveram
aumento intenso dos homicídios.
As demais variáveis são: variação
dos roubos de veículo entre 2001 e 2018, % de entrevistados que avalia que o
crime aumentou nos últimos anos (pesquisa de vitimização 2014), variação nas
armas de fogo apreendidas pelas polícias entre 2013 e 2018 e variação nas
mortes decorrentes de intervenção policial.
Como pode ser visto no resumo embaixo
da tabela, os Estados com melhor desempenho nos homicídios são aqueles que
tiveram menor variação nos roubos de veículos, menor % da população avaliando
que o crime aumentou, menor apreensão de armas (que mede, supomos, quantidade de armas em circulação) e menor crescimento
das mortes em confronto. As associações bivariadas são todas estatisticamente
significantes.
As evidências dão suporte à
teoria de que o crescimento dos homicídios no Norte e Nordeste esteve ligado nas últimas décadas ao crescimento rápido da economia, que aumentou os
crimes patrimoniais, que aumentou a sensação de insegurança, que aumentou o
número de armas em circulação e em decorrência os homicídios, principalmente
interpessoais. A reação das polícias estaduais a este aumento da criminalidade
e da sensação de insegurança parece ter sido o aumento da letalidade,
procurando responder com força bruta às pressões da sociedade para refrear a
criminalidade. Observe-se que a relação de longo prazo entre o crescimento dos
homicídios, crescimento dos roubos e crescimento dos confrontos é positiva no
período, isto é, quanto mais crimes, mais confrontos – diferente da associação sugerida
pelos defensores dos confrontos. Mas, como alertamos, o design simples da
análise não permite concluir nem uma coisa nem outra.
Deixando de lado os testes
estatísticos e pensando na teoria, faz mais sentido pensar no aumento dos confrontos
como o resultado do crescimento da criminalidade e da sensação de insegurança
nos últimos anos do que como causa da queda recente da criminalidade. O discurso
do governo federal e de alguns governos estaduais reforçam uma tendência de
crescimento que é anterior. As eleições de políticos de direita como Bolsonaro e Witzel são também,
em parte, reflexo da piora da criminalidade e da insegurança dos anos
anteriores no país, fruto, entre outros fatores, da falha da esquerda em
oferecer soluções eficazes para o problema da segurança.
Na medida em que a tendência
criminal é de queda no país desde 2017, esse discurso pró letalidade é ainda
mais anacrônico (embora ele independa das variações criminais...). Ele vitima
policiais e inocentes e transforma policiais em capitães do mato, afastando
ainda mais a população dos órgãos de segurança. Uma polícia profissional tem
índices elevados de resolução de crimes e baixos de letalidade. As polícias
devem saber manter seus padrões de profissionalismo e ética no uso da força,
protegendo-se das pressões de governos populistas e da população amedrontada. É
pra ela que sobram, no final das contas, o stress, os suicídios e as prisões
por uso excessivo da força.
A questão não é apenas de eficácia,
mas do tipo de política pública que queremos, assim como na questão da pena de
morte. Mesmo que eventualmente se provasse que os confrontos são eficazes para
a redução da criminalidade, ainda assim seria uma política fracassada, por princípio.
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