segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Da relação entre os confrontos com a polícia e as tendências criminais



Como a criminalidade no país tem caído nos últimos dois anos e as mortes em confronto com a polícia aumentado, os que defendem a política de confronto com os criminosos procuram associar as duas tendências. As crianças mortas e feridas, nesta perspectiva, são apenas efeitos colaterais imprevistos de uma política eficaz...

Com efeito, as mortes em confronto com a polícia – ou MDIP, mortes decorrentes de intervenções policiais – praticamente dobraram de 2012 para cá, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que traz os dados para ocorrências envolvendo policiais civis e militares, em folga e em serviço. A média de mortos entre os anos 2012 a 2014 foi de 2560 casos enquanto no período 2016 a 2018 subiu para 5207 casos (optei por trabalhar com a média de alguns anos pois o número de casos é baixo em alguns Estados). Isto dá um crescimento médio de 103,4 entre os dois períodos.

Observe-se desde já que esta tendência de crescimento não começa com o governo Bolsonaro (ou Witzel no RJ) mas é anterior, embora a série temporal disponível seja curta. O MS foi o único Estado a apresentar queda de MDIP no período e há grande variação no percentual de aumento entre os Estados: os aumentos mais expressivos estão em geral concentrados nas regiões Norte e Nordeste. O grande salto percentual ocorre em 2014, que teve um crescimento de 42,8% com relação a 2013. Não por acaso, como notamos alhures, é quando se inicia a recessão econômica, que durou até 2016.




E como foi a tendência criminal nestes Estados onde mais cresceram os confrontos? Existe alguma relação com os confrontos? Uma resposta mais rigorosa a esta questão exigiria um design de pesquisa mais complexo, como um painel de dados por Estado e ano, trazendo tanto os dados dos confrontos quanto de criminalidade e controlando por uma série de variáveis.

Não faremos isto aqui, onde nos limitaremos a apresentar alguns indícios de tendências – tomando apenas médias e correlações bivariadas. Correlações bivariadas, como se sabe, podem ser enganosas, mas servem como etapa exploratória da análise.

A tabela abaixo traz os Estados, listados em ordem de grandeza das variações dos homicídios dolosos entre 2001 e 2018. Na parte superior da tabela vemos os Estados que tiveram queda ou crescimento pequeno nos homicídios e na parte inferior os Estados que tiveram aumento intenso dos homicídios.




As demais variáveis são: variação dos roubos de veículo entre 2001 e 2018, % de entrevistados que avalia que o crime aumentou nos últimos anos (pesquisa de vitimização 2014), variação nas armas de fogo apreendidas pelas polícias entre 2013 e 2018 e variação nas mortes decorrentes de intervenção policial.

Como pode ser visto no resumo embaixo da tabela, os Estados com melhor desempenho nos homicídios são aqueles que tiveram menor variação nos roubos de veículos, menor % da população avaliando que o crime aumentou, menor apreensão de armas (que mede, supomos,  quantidade de armas em circulação) e menor crescimento das mortes em confronto. As associações bivariadas são todas estatisticamente significantes.

As evidências dão suporte à teoria de que o crescimento dos homicídios no Norte e Nordeste esteve ligado nas últimas décadas ao crescimento rápido da economia, que aumentou os crimes patrimoniais, que aumentou a sensação de insegurança, que aumentou o número de armas em circulação e em decorrência os homicídios, principalmente interpessoais. A reação das polícias estaduais a este aumento da criminalidade e da sensação de insegurança parece ter sido o aumento da letalidade, procurando responder com força bruta às pressões da sociedade para refrear a criminalidade. Observe-se que a relação de longo prazo entre o crescimento dos homicídios, crescimento dos roubos e crescimento dos confrontos é positiva no período, isto é, quanto mais crimes, mais confrontos – diferente da associação sugerida pelos defensores dos confrontos. Mas, como alertamos, o design simples da análise não permite concluir nem uma coisa nem outra.

Deixando de lado os testes estatísticos e pensando na teoria, faz mais sentido pensar no aumento dos confrontos como o resultado do crescimento da criminalidade e da sensação de insegurança nos últimos anos do que como causa da queda recente da criminalidade. O discurso do governo federal e de alguns governos estaduais reforçam uma tendência de crescimento que é anterior. As eleições de políticos de direita como Bolsonaro e Witzel são também, em parte, reflexo da piora da criminalidade e da insegurança dos anos anteriores no país, fruto, entre outros fatores, da falha da esquerda em oferecer soluções eficazes para o problema da segurança.

Na medida em que a tendência criminal é de queda no país desde 2017, esse discurso pró letalidade é ainda mais anacrônico (embora ele independa das variações criminais...). Ele vitima policiais e inocentes e transforma policiais em capitães do mato, afastando ainda mais a população dos órgãos de segurança. Uma polícia profissional tem índices elevados de resolução de crimes e baixos de letalidade. As polícias devem saber manter seus padrões de profissionalismo e ética no uso da força, protegendo-se das pressões de governos populistas e da população amedrontada. É pra ela que sobram, no final das contas, o stress, os suicídios e as prisões por uso excessivo da força.

A questão não é apenas de eficácia, mas do tipo de política pública que queremos, assim como na questão da pena de morte. Mesmo que eventualmente se provasse que os confrontos são eficazes para a redução da criminalidade, ainda assim seria uma política fracassada, por princípio.

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