Coordenei em 2016, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a
coleta dos dados e análise do Censo Penitenciário para o Ministério da Justiça,
um amplo levantamento sobre o perfil do preso e das prisões realizado desde
1995 com os administradores dos estabelecimentos prisionais em todo pais.
Os resultados são conhecidos e pouco se alteram a cada ano: a maioria
dos presos é jovem, de baixa renda e escolaridade, do sexo masculino, não
ligado ao mercado formal, proveniente de famílias numerosas e pouco estruturadas,
moradores de bairros com infraestrutura precária, etc. e tal. Como dizia-se nas
polícias, os hospedes são aqueles que tem cara de B.O.
Os sociólogos já mostraram que cometer crimes, assim como casar ou
suicidar-se, está longe de ser apenas uma escolha individual. Existem padrões estatísticos
bastante claros nestes comportamentos, influenciados por variáveis externas de
cunho demográfico, social, econômico, religioso, familiares e assim por diante.
Assim como diversos outros comportamentos, quando o indivíduo comete um crime,
casa ou se suicida, ele em parte age conscientemente segundo suas escolhas e
livre arbítrio. Em outra parte, contudo, age inconscientemente, premido por circunstâncias
invisíveis mas reais que limitam certas escolhas e induzem a outras.
Liberdade, já dizia o filósofo, é a consciência da necessidade.
A existência e atuação destas diversas forças invisíveis sobre o
comportamento individual estão longe de ser novidade, pelo menos desde o século
passado, quando Durkheim mostrou que a mais individual e pessoal das decisões –
tirar a própria vida – era mais comum entre os homens e solteiros, mais rara
entre os católicos, mais frequentes nos períodos de anomia e assim por diante,
levantando sérias objeções aos que enxergavam o fenômeno apenas como um ato ditado
pelo acaso e fatores pessoais. Fatos sociais são coisas. Experimente ficar
sentado e não aplaudir ao final daquela peça maçante ou sugerir que a parceira do primeiro encontro divida a conta do restaurante....
Estes padrões encontrados nos perfis dos criminosos, evidenciado em
todos os censos prisionais e em todos os países nos fazem refletir que
a teoria do direito até hoje incorporou muito pouco das teorias sociológicas
sobre o comportamento humano, pelo menos no que diz respeito à aplicação das
penas.
Por uma questão de coerência filosófica, o direito precisa postular que
o crime é principalmente uma escolha individual, consciente, ditada pelo livre
arbítrio. Sem este postulado básico, como responsabilizar alguém pelo
cometimento de um ato criminoso? Afinal de contas, apenas uma minoria envereda
pelo caminho do crime, entre os milhões de homens, jovens, pobres, moradores de
periferia, etc. Se apenas fatores externos explicassem o crime, então a maioria
dos indivíduos com perfil semelhante optaria pelo crime. Mesmo reconhecendo a influência
destes fatores externos, o direito precisa partir do princípio de que o
comportamento criminoso é manifestação, antes de tudo, de uma decisão
individual. Pois do contrário, seria preciso admitir a dificuldade de imputar
responsabilidades individuais, como se fez no caso dos incapazes.
Quais seriam as implicações se, por outro lado, imaginarmos que o
comportamento criminoso é a resultante tanto de escolhas individuais quanto de
fatores sociais (econômicos, religiosos, familiares, etc.)? Quais as consequências
para a dosimetria das penas? Como analogia, podemos pensar nos laudos
psiquiátricos, que avaliam até que ponto o criminoso tem entendimento do ato
cometido. O direito aceita a diminuição de penas quando reconhece que, por
problemas psíquicos, certos indivíduos ou situações (imaturidade, violenta emoção,
etc.) impedem que o indivíduo reconheça o caráter criminoso dos seus atos.
Se fosse possível fazer um “laudo sociológico”, um criminólogo argumentaria
que ser homem, jovem, pobre, de baixa escolaridade, criado por apenas um dos
genitores, com pais ou irmãos anteriormente condenados na justiça, morador de
local com infraestrutura precária, usuário de droga, etc. – são todos
atenuantes do crime. Na dosimetria da pena, pessoas com uma ou várias destas
características deveriam, por justiça, receber penas menores. Quanto maior o
número de fatores de risco cumulativos, menos podemos afirmar que o ato
criminoso é uma escolha individual. Por outro lado, as penas deveriam ser
maiores para criminosos com perfil oposto: os fatores de risco de envolvimento
com o crime, nestes casos, são muito menores e maior é a importância da escolha
individual. Para um mesmo tipo de crime, Marcola deveria receber penas menores
e Marcelo Odebrecht maiores.
Nesta Teoria Sociológica da Justiça[1],
ceteris paribus, a responsabilidade
de cada um é atenuada pelos fatores de risco e agravada pelos fatores
protetivos. É muito mais difícil para alguém com o perfil de Marcola resistir
ao chamado do crime do que alguém com o perfil de Marcelo Odebrecht. Delinquir
é muito mais uma escolha para o segundo do que para o primeiro.
A dificuldade aqui, argumenta-se, é que os fatores sócio criminológicos são de
natureza probabilística. A presença de um ou vários fatores de risco apenas
aumenta as chances de envolvimento com o crime, mas não a determina. Não são
fatores determinísticos. O direito, especificamente no que tange a aplicação de
penas, precisa de certezas e tem dificuldade em lidar com fatores probabilísticos,
dado o valor do bem a ser garantido, a liberdade. Mas o mesmo pode ser dito dos fatores psíquicos:
nem todos os portadores de esquizofrenia ou psicopatias são criminosos, embora
boa parte dos criminosos apresentem algum distúrbio psíquico. Distúrbios psíquicos
aumentam o risco de envolvimento com o crime, mas tampouco são determinísticos.
Mesmo assim os laudos psiquiátricos são aceitos nos tribunais.
Alguns argumentarão que no caso dos laudos psiquiátricos, é possível individualizar
e mensurar o grau de comprometimento psíquico de uma pessoa através de testes
padronizados e escalas de aceitação universal. O conhecimento criminológico
atual com relação aos fatores de risco e fatores protetivos, possibilitaria igualmente
a elaboração de testes e escalas padronizadas para mensurar graus de
culpabilidade. A diferença não está, portanto nem na natureza probabilística do
conhecimento nem na dificuldade de individualização.
Há uma outra explicação sobre porque os fatores psíquicos são levados em
consideração pelos tribunais e sistemas de justiça e os fatores sociais são
ignorados: leva-los em conta seria admitir nossa falha enquanto sociedade em
garantir condições minimamente igualitárias. Implicaria na diminuição de penas
às “classes perigosas” e no aumento do rigor aos crimes de colarinho branco. É difícil
uma teoria sociológica da justiça vingar neste contexto. A "elite" conseguiu
invocar com eficiência nos tribunais os argumentos em favor da atenuação das
penas, nos casos de comprometimento psíquico. Invocar argumentos sociológicos
seria um tiro pela culatra. E pelas regras do sistema, ninguém é obrigado a
produzir provas contra si mesmo.
[1] Desenvolvi originalmente estes
argumentos oralmente, na banca de Carlos Alberto Fanchioni da Silva. Teoria da Fraternidade:
prelúdios sobre os direitos humanos na execução penal. 2001. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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