“Bandeira
preta e branca
Caveiras e
carrancas
E a voz do
capitão
Ho, ho, ho
E uma garrafa
de rum
Ho, ho, ho
É deus e nós
por nenhum”
Bobbio narra um diálogo curioso
entre Alexandre, O Grande e um pirata, em seu livro A Teoria das Formas de Governo.
A certa altura Alexandre pergunta ao pirata por que ele insiste em atacar
seu império com seu bando. Pelos mesmos motivos que você – responde ele: só que
como tenho apenas um só navio me chamam de pirata e como você tem uma frota, te
chamam de Almirante.
Trata-se de uma resposta perspicaz:
ele insinua que o comportamento deles é qualitativamente igual e que a única
diferença entre eles é quantitativa. Ambos saqueavam, abusavam e barbarizavam
seus inimigos. O Império não se pautava pela Lei, mas se impunha pela força
bruta.
Fazendo um paralelo, esta é mais
ou menos a situação quando vemos alguns confrontos recentes entre policiais e
suspeitos nas ruas das grandes metrópoles brasileiras. Se o comportamento
policial não é pautado pela Lei e desobedece aos procedimentos de engajamento
num confronto, então temos apenas uma diferença quantitativa entre policiais e
criminosos: os primeiros têm apenas mais viaturas, armas e efetivos, mas atuam frequentemente
ao arrepio das regras do direito, que delimitam os confrontos legítimos dos
ilegítimos, os legais dos ilegais.
Sim, em determinadas situações, o
agente estatal pode fazer uso da força letal, como último recurso, baseado nos
princípios da necessidade e proporcionalidade. Necessidade quando se trata de
salvaguardar a própria vida ou a de um terceiro. E proporcional: não se atira
num suspeito porque ele fugiu de um bloqueio ou ameaçou o policial com uma
caneta.
É muito difícil na prática tomar
estas decisões, no calor da hora. Eu mesmo participei em diversas ocasiões do treinamento
policial na pista de tiro, adotando o método simulado “Giraldi”, e mais de uma vez
atirei sem querer numa testemunha ou suspeito desarmado, que colocava a mão no
bolso para mostrar um documento e não para pegar uma arma... A decisão precisa
ser rápida e num contexto de stress
elevado. Não é fácil como imaginam as cartilhas de direito humanitário!
Mas ai reside todo o drama da
atividade policial: ao contrário dos criminosos, o policial precisa seguir a
Lei, seguir os procedimentos que estipulam a progressividade no uso da força
(sinalização verbal, armamento não letal, tiro de advertência, etc.). Saber se
proteger durante a abordagem, não forçar o confronto. Os procedimentos corretos de abordagem estão
descritos nos POPs (procedimento operacional padrão) e o treinamento adequado
deveria servir para evitar a perda dos bens mais preciosos, as vidas de
policiais e suspeitos nestes eventos. É arriscado para o policial. Mas, se ele
não segue as regras estabelecidas e determinadas pela Lei, a diferença entre
polícia e bandido acaba por ser a mesma diferença do pirata para Alexandre
Magno, apenas quantitativa. Esse é o sacrifício: do outro lado vale tudo, para
o agente da Lei valem as regras do Estado de Direito.
No Brasil, as mortes em confronto
(ou mortes em decorrência de intervenção policial) representam aproximadamente
5% do total de mortes. Em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro esta
porcentagem é de respectivamente 10% e 18%, usando valores médios de 2013 e
2014. São porcentagens elevadíssimas para os padrões internacionais. Outros
indicadores sugerem também que existe um excesso nas mortes em confronto:
morrem muito mais suspeitos do que policiais nestes confrontos e a quantidade
de mortos supera a quantidade de feridos, padrão inverso ao esperado. Estes
padrões são conhecidos e em conjunto evidenciam que o uso da força letal tem
sido utilizado de forma equivocada pelas polícias brasileiras, de maneira
sistemática.
Dentro do Brasil, existe muita variabilidade na incidência de confrontos: em alguns Estados é baixa e
em outros elevada. O que explica esta variabilidade? Esta é questão que com
dois colegas (Vania Ceccato e Silas Melo) estamos procurando responder num artigo
sobre o tema, usando a taxa de confrontos como variável dependente e diversos
preditores como variáveis explicativas: taxa de homicídios no Estado, IDH, existência
de Ouvidoria, capacitação em direitos humanos, confiança na polícia, gasto per
capita em segurança, quantidade de armas
em circulação, taxa de encarceramento de homicidas, proximidade espacial, taxa
de mortalidade policial e diversas outras. A letalidade policial também varia consideravelmente
no tempo, de acordo com o perfil da gestão (Comandante Geral, Secretário de
Segurança) e em seguida a incidentes dramáticos (Carandirú, Favela Naval, etc.).
Adiantando aqui alguns
resultados, a capacitação em direitos humanos parece não surtir muito efeito,
mas a existência de uma Ouvidoria de Polícia, maiores gastos em segurança per
capita e punição de homicidas com prisão apresentaram efeitos significativos.
Isto significa que é possível atenuar o problema através de políticas públicas.
Quanto mais sofisticado, qualificado e eficiente o sistema de justiça criminal,
menor a incidência de mortes em confronto.
É difícil controlar a
criminalidade levada a cabo pelos criminosos, mas ao menos as mortes cometidas
em situação de confronto, com a participação de policiais, podemos controlar. A
confiança da população na polícia é um dos elementos chave para a melhoria da segurança
e a violência e despreparo nas abordagens policiais em nada contribuem para
melhorar esta confiança mútua. Os criminosos devem temer a Justiça e a polícia,
não a população. Aqui no Brasil, ao contrário, a criminalidade parece não ter
medo da polícia. O povo é que tem. Isto acontece quando o pirata e o imperador
se comportam segundo os mesmos códigos morais.
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