Esforço em direção ao aprimoramento do Judiciário pode ser intensificado com o uso de pesquisas como as feitas pelo IBGE duas vezes, escreve Tulio Kahn
Tulio Kahn
Diariamente, milhares de pessoas se envolvem em diversos tipos de conflitos mais ou menos sérios. São conflitos entre patrões e empregados, na esfera do trabalho; brigas com os planos de saúde, no âmbito dos direitos dos assegurados; cobranças indevidas de prestadoras de serviços; separações amorosas; querelas com vizinhos ou no mundo dos negócios.
Para resolver estes conflitos, as pessoas recorrem aos sindicatos, órgãos de defesa do consumidor, mediadores, parentes, polícia, SACs e outras instâncias de mediação extrajudicial. Outros optam por uma iniciativa mais formal, recorrendo aos diversos ramos da Justiça – trabalhista, cível, criminal etc – e há ainda os que simplesmente não tomam qualquer iniciativa: desconhecem seus direitos ou avaliam que o esforço não vale a pena, que é demorado, distante ou caro, entre outros motivos.
Mas de quantos conflitos estamos falando? De quais tipos? Quais foram as medidas tomadas e os órgãos acionados? Por que motivos estes órgãos foram acionados ou não acionados? Qual o perfil de quem recorreu à justiça? Ficaram satisfeitos com o resultado?
Para responder a estas e outras questões os governos realizam esporadicamente as pesquisas de acesso à justiça. No Brasil, por exemplo, em duas ocasiões (1988 e 2009) o IBGE sondou estas questões através de pesquisas probabilísticas de vitimização e acesso à justiça – essas pesquisas são adendos da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e permitem associar as características dos entrevistados, como escolaridade, renda, trabalho e habitação, com os crimes vivenciados e a busca por justiça.
A título de ilustração dos resultados obtidos, na edição de 2009 observou-se que 12,6 milhões de pessoas de 18 anos ou mais, 9,4% do total desta faixa etária, estiveram envolvidas em situação de conflito nos cinco anos que antecederam à data da entrevista. A Região Sul foi a que apresentou os maiores percentuais, tanto entre homens quanto entre mulheres, 12,7% e 10,3%, respectivamente.
Das pessoas que tiveram situação de conflito, 92,7% (11,7 milhões) buscaram solução, sendo que 57,8% recorreram principalmente à justiça e 12,4% ao juizado especial. Isto significa que boa parte da solução para os conflitos passa ao largo do sistema judiciário formal. Isto não é necessariamente ruim, desde que não seja em razão de desconhecimento ou da dificuldade de acesso ao sistema. No gráfico abaixo, o IBGE desagrega os motivos para a não utilização da justiça para a resolução do conflito.
Quanto maior o nível de escolaridade, maior também o percentual de pessoas que declararam terem vivido situação de conflito nos últimos cinco anos. Os domicílios com rendimento acima de 5 salários mínimos apresentaram os maiores percentuais de pessoas que vivenciaram situação de conflito em todas as regiões. Os resultados mostraram que as áreas trabalhista, de família e criminal alcançaram os maiores percentuais, respectivamente: 23,3%, 22% e 12,6%. Note-se que atender preferencialmente a população com maior escolaridade e renda não significa necessariamente viés do judiciário, uma vez que é precisamente esta população que, por conta de sua inserção socioeconômica, tem maior potencial de envolvimento em certos tipos de conflito de natureza econômica.
Das pessoas que buscaram solução para o conflito, 5,8 milhões (49,2%) tiveram sua causa solucionada e 5,9 milhões (50,8%) ainda não solucionada na ocasião. O Procon foi apontado mais frequentemente na solução dos conflitos no período, 69,4%. Por outro lado, a justiça teve o maior percentual de indicação dos conflitos não solucionados, 56,5%.
Entre as conclusões principais, as pesquisas de 1988 e 2009 revelaram que grupos economicamente desfavorecidos enfrentavam dificuldades para acessar o sistema judicial devido aos custos elevados, distancia, ou falta de conhecimento dos próprios direitos, entre outros motivos. Revelaram também desigualdades regionais no acesso à justiça, na medida em que as regiões mais desenvolvidas do País (como Sudeste e Sul) tinham maior infraestrutura jurídica, enquanto regiões menos desenvolvidas (como Norte e Nordeste) enfrentavam limitações no acesso a serviços judiciais. Estas desigualdades de acesso também se manifestam quando comparamos contextos urbanos e rurais.
Assim como na sondagem de vitimização, através destas pesquisas de acesso à justiça podemos saber algo sobre o universo dos conflitos cotidianos, que porcentagem de conflitos foi solucionada e por qual tipo de instituição. Em outras palavras, podemos conhecer a taxa de “judicialização” dos conflitos, que pode ser definida como a quantidade de conflitos não triviais que ocorrem na sociedade nos últimos “X” anos e que chegam ao conhecimento da justiça. Lembrando aqui que o ideal não é judicializar todos os conflitos, mas antes o contrário.
Estas pesquisas permitem aos pesquisadores avaliar a eventual existência de viés no acesso à justiça, a morosidade ou agilidade do sistema, o grau de satisfação dos querelantes com os resultados da ação. Neste sentido, estas pesquisas fornecem indicadores para a avalição subjetiva e qualitativa do sistema judiciário.
As pesquisas deste tipo podem ainda ajudar a identificar as áreas mais judicializadas em cada período, como os processos contra os planos de saúde ou prestadoras de energia ou serviço de telefonia. São problemas que atingem dezenas de milhares de usuários, sobrecarregam o sistema judiciário e sugerem que é preciso resolver o problema no atacado: novas leis e regulações gerais que diminuam os atritos mais comuns entre prestadores e usuários.
Elas podem ajudar a avaliar o impacto de mudanças feitas no judiciário, como, por exemplo, o impacto dos Juizados Especiais na ampliação do acesso à justiça ou da ampliação das Defensorias Públicas nos Estados. Para isso, é preciso que haja um monitoramento constante da situação, refazendo a pesquisa sistematicamente. As pesquisas de 1988 e 2009 mostraram que os Juizados Especiais atendiam cerca de 20% das demandas em 2009, contra sua inexistência em 1988. Quanto ao uso da Defensoria Pública, houve um crescimento de cerca de 30% no atendimento de demandas judiciais por populações de baixa renda em comparação com 1988.
Um sistema de justiça ideal é aquele amplamente acessível à população e não apenas aos mais ricos. Que avalia os processos com agilidade e equidade. Que toma decisões transparentes e inteligíveis para as partes envolvidas e assim por diante. As pesquisas de acesso à justiça podem ajudar a monitorar estes quesitos e servir como um contraponto e complemento aos indicadores quantitativos já produzidos em abundância pelo relatório Justiça em Números.
É preciso avaliar a carga processual dos juízes, prazos e seu custo para a sociedade. Tais indicadores são sem dúvidas cruciais. A ideia das pesquisas de acesso à justiça é introduzir um novo critério de avaliação da justiça, complementar, que envolva também aspectos subjetivos e valorativos. De que adianta, afinal, que a justiça julgue milhares de casos por hora, trabalhando a todo vapor, se a maioria dos conflitos passa ao largo do sistema judiciário, se as decisões não são percebidas pelos usuários como justas ou os procedimentos como equitativos?
Até algumas décadas, o Judiciário era percebido como um poder técnico e os juízes como servidores capacitados e honrados. Embora não disponhamos de dados comparativos, pesquisa realizada em 2019 pela AMB e FGV sobre a imagem do Judiciário brasileiro mostrou que 57% avaliavam a atuação do sistema como “regular” e 6% como “péssimo”.
A visibilidade do STF e seus ministros, envolvidos em decisões muitas vezes controversas, a interferência nos assuntos dos demais poderes, os escândalos de corrupção e venda de sentenças, os salários acima do teto constitucional, o corporativismo na punição aos juízes condenados, os privilégios etc. tem abalado o prestígio do Poder Judiciário dentro da sociedade. As pesquisas de acesso à justiça podem servir de guia para monitorar estas percepções e corrigir rumos na gestão do sistema.
Estas percepções negativas podem abalar a própria legitimidade do Poder Judiciário e assim do próprio Estado Democrático de Direito, do qual o Judiciário é um dos pilares. O baixo prestígio do Legislativo e do Executivo brasileiro contribui para a falta de legitimidade do sistema político brasileiro e os baixos níveis de adesão à democracia. Mas os representantes destes ramos podem ao menos serem trocados de tempos em tempos pela população, quando insatisfeita. No Judiciário, esse esforço em direção ao aprimoramento depende principalmente da consciência e moralidade de seus membros e suas lideranças. Conhecer onde estão os maiores problemas, por meio de pesquisas, é parte da solução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário