A Secretaria de Segurança do Rio
Grande do Sul divulgou nestes dias os dados criminais relativos a maio de 2024,
que captam as tendências criminais no Estado durante o período das inundações,
que afetaram 68% dos 497 municípios, desde o final de abril.
Havia grande expectativa sobre estes
números, uma vez que as notícias indicavam um crescimento dos furtos a residências
e estabelecimentos comerciais e dos abusos sexuais nos abrigos emergênciais,
entre outros delitos. A literatura a respeito dos efeitos dos desastres
naturais sobre a criminalidade, embora não conclusiva, também sugeria
majoritariamente um crescimento de algumas modalidades de crime, em curto e
longo prazo, tanto nas cidades diretamente afetadas quanto nas áreas vizinhas,
via migração. (Varano et al.,
2010).
Pelo menos no que se refere aos
delitos monitorados e no curto prazo, o que vimos foi uma queda generalizada da
criminalidade em maio, quando comparamos com a média dos quatro primeiros meses
do ano.
A tabela abaixo compara maio com a
média anterior para os 11 indicadores monitorados pela SSP RS, tanto para as
cidades afetadas diretamente pelas inundações (337) quanto para as não afetadas
(160). A relação das cidades afetadas foi divulgada pela Defesa Civil do Estado
(posteriormente mais 4 cidades foram acrescentadas na lista das afetadas, mas
os resultados gerais não devem ser diferentes).
Crimes do RS – janeiro a maio de 2024
– municípios afetados e não afetados pela calamidade.
Fonte: SSP-RS
Os desastres naturais são também
“experimentos naturais”, situações excepcionais onde podemos testar uma série
de hipóteses, uma vez que conseguimos encontrar um contrafactual adequado (cidades não afetadas) para comparar
com um grupo de controle (cidades afetadas), considerando que a seleção entre
os grupos foi aleatória. Comparando as tendências criminais das cidades
afetadas e não afetadas, podemos lançar alguma luz sobre as explicações que
fazem mais sentido para explicar a queda.
Com exceção dos latrocínios – cuja
quantidade absoluta é pequena e sujeita a flutuações – e do tráfico de
entorpecentes nas cidades não afetadas, o que vemos é uma queda generalizada e
intensa nos indicadores criminais em maio, comparado à média dos meses
antecedentes. A literatura, especialistas, os jornais e autoridades
governamentais estavam equivocados
então?
Não necessariamente. A literatura traz
casos em que a criminalidade caiu após desastres naturais, como foi o caso do
Chile após os terremotos em 2010, de modo que o caso do RS não é excepcional .
Alguns fatores podem explicar o fenômeno: aumento da solidariedade na população
e impossibilidade de registrar as ocorrências na polícia. Mas acima de tudo uma
forte mudança na rotina diária, como presenciamos durante a COVID, quando os
crimes patrimoniais também despencaram no país. Para que um crime ocorra vítima
e autores precisam se encontrar num mesmo espaço e tempo, na ausência de
guardiões. As inundações praticamente impediram a circulação de pessoas e bens,
limitando consequentemente as oportunidades criminais.
A hipótese da subnotificação perde
força, quando observamos que as quedas ocorreram tanto nos municípios afetados
quanto nos não afetados. Não apenas não houve “migração” de crimes como em
alguns casos estes caíram mais intensamente nos municípios não afetados, como
nos furtos e roubos. O mesmo pode se
dizer da hipótese da mudança de rotina e das oportunidades. Exceto se a
calamidade foi tamanha que afetou a capacidade da polícia de registrar crimes
em todo lugar e afetou a rotina cotidiana, mesmo nas cidades que não estavam
alagadas, contaminado de alguma forma a rotina destas cidades.
Essas hipótese não podem ser
descartadas, mas na falta de evidências de que isso tenha ocorrido, ganha força
à hipótese da “solidariedade”, segundo a qual criminosos , sensibilizados pela
tragédia, teriam menores incentivos à execução de crimes... Confesso que
pessoalmente não acredito muito nesta conjectura, mas a comparação entre os
grupos de municípios reforça esta linha de raciocínio, uma vez que a queda foi
generalizada.
De fato, sociedade e governos se
uniram no apoio ao Rio Grande do Sul, contribuindo com recursos financeiros,
alimentos, roupas, remédios, envio de tropas e equipamentos de salvamento, numa
manifestação de solidariedade poucas vezes vista. Este apoio deve ter
contribuído para aliviar necessidades imediatas e eventualmente a pressão para
o cometimento de crimes oportunistas ou de necessidade. Mas é plausível supor
que estes recursos foram concentrados nas áreas afetadas, de modo que não
explica a queda criminal nos demais municípios.
É preciso observar que os dados não
permitem desagregar o que aconteceu especificamente com os arrombamentos e
saques, que estão somados na grande categoria “furtos”. É possível então que
alguns tipos de furtos tenham crescido, não obstante a queda geral na
categoria. Não existem tampouco dados para monitorar os crimes sexuais, de que
tivemos notícias episódicas pelos meios de comunicação. Em suma, estamos
observando apenas alguns indicadores criminais e de forma agregada. Seria
necessário um detalhamento das modalidades para verificar o impacto sobre situações
específicas, como os furtos em residências e as importunações sexuais.
Finalmente, estamos observando
tendências de curtíssimo prazo enquanto a literatura sugere que muitos dos
efeitos serão observados apenas em longo prazo, quando se acirrarão os fatores
sociais e econômicos tipicamente associados ao crime: menos empregos, queda no
rendimento escolar, queda na arrecadação de impostos e, portanto menos
investimentos nas polícias, aumento dos problemas mentais, aumento da pobreza e
desorganização social. (Waddell
et al., 2021).
Vimos
com alívio a queda generalizada da criminalidade no RS em maio, mas é provável
que esta queda seja temporária e que os índices voltem aos patamares anteriores
em pouco tempo, como ocorreu no pós COVID. Lidar com estes efeitos requer uma abordagem
abrangente que inclua respostas imediatas da aplicação da lei e suporte social
e econômico de longo prazo para mitigar os efeitos adversos dos desastres
naturais sobre o crime e a violência.
Referências
Aguirre, B. E., & Lane, D. (2019). [Fraud in disaster:
Rethinking the
phases](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420919305746).
Cutter, S., Barnes, L., Berry, M., Burton, C., Evans, E., Tate, E.,
& Webb, J. J. (2008). [A place-based model for understanding community
resilience to natural
disasters](https://www.semanticscholar.org/paper/011e91fb1fb77f6cd265dd8746e83ba6f1ef02b9).
Nivette, A. E., Zahnow, R., Pérez Aguilar, R. A., Ahven, A., Amram, S.,
Ariel, B., & Aguilar, M. J. (2021). [A global analysis of the impact of
COVID-19 stay-at-home restrictions on
crime](https://www.nature.com/articles/s41562-021-01139-z.pdf).
Varano, S. P., Schafer, J. A., Cancino, J. M., Decker, S. H., &
Greene, J. R. (2010). [A tale of three cities: Crime and displacement after
Hurricane Katrina](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S004723520900141X).
Waddell, S. L., Jayaweera, D., Mirsaeidi, M., Beier, J., & Kumar, N.
(2021). [Perspectives on the Health Effects of Hurricanes: A Review and
Challenges](https://www.semanticscholar.org/paper/ebc00dbefbc5db4a64b360d3213890587424d296).
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