Túlio Kahn: “Participação popular na segurança pública”
10-03-2016
Túlio Kahn, cientista político e colaborador do Espaço Democrático
Em algum ponto no passado, quando as cidades eram menores e a segurança uma tarefa intrinsicamente comunitária, é possível supor que existisse uma colaboração intensa entre os moradores e os responsáveis pela manutenção da ordem pública. Os moradores relatavam pessoas suspeitas na área, denunciavam os crimes sofridos e seus autores, pediam ajuda para controlar a desordem aos policiais que andavam a pé pelas ruas, participavam das eleições dos chefes de polícia, vigiavam mutuamente suas propriedades e os bens públicos.
A transformação progressiva das polícias em instituições profissionais e burocratizadas, no início do século passado, tornou a polícia mais técnica e neutra, mas afastou a comunidade da questão da segurança: a população local deixou de conhecer pessoalmente seus policiais e estes os moradores da área. A movimentação passou a ser feita com viaturas e os contatos ficaram restritos à comunicação telefônica. A alocação dos recursos obedecia estritamente aos mapas e hot spots indicados pelos computadores. A colaboração espontânea cedeu lugar à desconfiança mútua entre policiais e moradores – especialmente os jovens – que já não viam os policiais como membros da comunidade, mas como representantes de uma agência de controle – burocrática, violenta, afastadas dos problemas e dos membros da comunidade.
Este cenário descreve o contexto do ressurgimento do policiamento comunitário nos Estados Unidos nos anos 1970 e é bastante conhecido. Diversas estratégias foram colocadas em prática desde então para estimular a participação da população e estreitar os vínculos da polícia com a comunidade: retorno do policiamento a pé, feito por policiais conhecedores do bairro; criação do 911 reverso (com a polícia repassando informações de segurança para a comunidade, ao contrário do serviço tradicional); estímulo à formação dos neighborhoods watch(esquemas de fiscalização comunitários); criação dos conselhos locais e regionais de segurança; reuniões periódicas e sistemáticas com lideranças comunitárias; participação nas festas locais, programas para os jovens (envolvendo esportes, palestras contra drogas etc); uso de cães, cavalos, motocicletas, bandas e outros recursos policiais para a aproximação com crianças e jovens; programas de rádio e TV e, mais recentemente das redes sociais para estabelecer um diálogo com a sociedade; criação dos serviços de Disque Denúncia etc.
Os policiamentos comunitário e aquele voltado à resolução de problemas são, ainda hoje, um paradigma para as polícias de todo o mundo e a literatura sobre o tema sugere que este movimento de aproximação foi eficiente para melhorar a imagem da polícia e a sensação de segurança da população, mas é dúbia em relação ao sucesso na redução da criminalidade. Tratam-se de estratégias diferentes e precisam ser avaliadas isoladamente. De todo modo, como vimos, esta participação trás em si uma série de vantagens correlatas e hoje é praxe, nas polícias modernas, ouvir os reclamos da população e prestar contas de suas ações perante ela.
Este movimento comunitário e participativo alastrou-se pelas polícias da América Latina nos anos 1980 e 1990. E em paralelo a ele, vimos também o envolvimento mais intenso dos municípios na esfera da segurança. No Brasil, pela Constituição, a tarefa de policiamento cabe principalmente aos Estados, embora tenhamos uma polícia federal e os municípios possam também constituir guardas para zelar pelos “próprios municipais”. O resultado desta configuração institucional é que durante muitos anos nem o governo federal nem os municipais sentiram-se obrigados a atuar na esfera da segurança, vista como responsabilidade dos governos estaduais.
O crescimento desenfreado da criminalidade a partir dos anos 1980 forçou o governo federal e os municipais a reverem esta postura, uma vez que o tema se converteu numa das maiores preocupações populares e na hora de votar o eleitor não quer saber de que esfera é a responsabilidade pelo quadro deplorável da segurança pública no País. Assim, durante as últimas décadas presenciamos um envolvimento cada vez maior dos municípios na área da segurança, criando secretarias de segurança, planos de segurança, fundos específicos, guardas, conselhos e uma série de outros mecanismos e instituições para tentar lidar com o problema no âmbito local.
Vemos, assim, que uma série de processos paralelos contribuiu para o crescimento da participação popular na segurança em todo América Latina nos últimos anos: os regimes autoritários sufocaram por décadas a participação popular e o processo de redemocratização implicou no ressurgimento desta participação em vários setores, para além da política. Este cenário coincidiu com o momento em que as polícias procuravam se reaproximar das comunidades, após longo período de afastamento. Junte-se a isso o crescimento da criminalidade e a pressão para o envolvimento de todas as forças vivas da comunidade, inclusive os governos locais – neste embate, mais recentemente a expansão vertiginosa das redes sociais.
Segundo a pesquisa MUNIC–IBGE, edição 2014, existem conselhos de segurança em 691 municípios brasileiros, o que equivale a 12,4% dos municípios do País. A maioria dos Conselhos Municipais de Segurança é relativamente recente e cerca de 60% foram criados entre os anos 2000 e 2010. Aproximadamente 80% deles datam de 2000 para cá e tem, portanto, menos de 16 anos de funcionamento. Este crescimento pode ter sido induzido pelo Ministério da Justiça e seus fundos de segurança, que neste período voltou-se para financiar também as iniciativas municipais na área de segurança, o que serviu como um fator indutor na criação destas instituições. A criação dos Conselhos não foi iniciativa isolada e em boa parte dos municípios fez parte de um envolvimento maior das prefeituras na esfera da segurança, que compreendeu também a criação de guardas municipais, secretarias municipais de segurança, fundos e planos de segurança, entre outras ações.
É difícil avaliar se a existência ou intensidade de atuação do conselho de segurança no município produz algum efeito sobre a criminalidade, imagem da polícia ou sensação de segurança da população. A pesquisa MUNIC não capta a presença dos conselhos estaduais, que são bastante atuantes em alguns Estados. Além disso, normalmente trata-se de um pacote completo de intervenções simultâneas feitas pelos municípios – criação do conselho acompanhada de guarda, plano municipal, outras ações preventivas, etc – de modo que é muito difícil isolar o papel dele no meio deste coquetel de medidas. Seria preciso também exercer controle sobre uma série de características dos municípios, pois os dados sugerem que os conselhos tendem a se concentrar nos mais populosos, urbanos e com melhores indicadores sociais. De modo que qualquer mudança nestas condições, que afetem simultaneamente o crime, podem provocar uma associação espúria entre existência de conselho e evolução criminal (por exemplo, um programa federal de prevenção para as grandes cidades).
Qualquer que seja seu impacto, a participação popular na segurança veio para ficar e não se trata de um modismo passageiro. O que torna mais relevante conhecer como esta participação está ocorrendo, quais os seus efeitos e como pode ser aperfeiçoada para que não se torne apenas um meio ineficaz para distribuição de recursos públicos ou um instrumento para legitimar decisões autocráticas.
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